Tradução de “The writer’s room” (Omenana, Issue 25, March 2023)
Traduzido por/Translated by:
Isabely Moura Fujii
Mayara Gabrielle Freitas
Segundo todos os indícios, isso parecia um sonho, do tipo que tinha o potencial de se transformar em um pesadelo caso ela não acordasse.
Amana abriu os olhos vendo o mesmo prado. Flores roxas à sua direita, que se estendiam até onde a vista alcançava. Um riacho, talvez um pequeno rio, podia ser ouvido fluindo ali perto. Ela estava descalça. Olhou ao redor, procurando alguém, talvez algo. Deu um passo para ter uma visão melhor e quase instantaneamente sentiu as vinhas sob seus pés ganharem vida. Elas faziam cócegas. Ela as odiava. Assustada, suas mãos se agitaram no ar, tentando pular o mais alto que podia, mas era tarde demais. As vinhas já estavam enroladas em seus tornozelos, ancorando-a ao chão. Ela estava presa.
Amana vinha tendo esses “sonhos acordados” há alguns meses. Ela também havia aprendido a se libertar deles de alguma forma. Não sabia explicar, mas sempre conseguia – só que, dessa vez, tudo o que tentou falhou. Várias tentativas anteriores de afrouxar as vinhas emaranhadas de suas panturrilhas se mostraram inúteis: quanto mais tentava, mais apertadas elas ficavam. A pele do tornozelo e da panturrilha estava agora dolorosamente sensível. Ela massageou a panturrilha enquanto fazia mais uma tentativa desesperada de arrancar as vinhas.
— Elas têm vida própria — murmurou para si mesma, tentando não entrar em pânico.
— Por que não consigo acordar deste pesadelo? — Ela se perguntava.
Seus dedos procuraram qualquer coisa em que pudessem se agarrar e, usando a mão direita, cavou dolorosamente entre as vinhas, causando atrito em sua pele. Seus olhos começaram a lacrimejar. O desespero estava gravado em cada dobra de seu corpo. — Definitivamente, não é disso que os sonhos são feitos?
Ela puxou uma das vinhas que estava na metade de suas coxas.
— Não é disso que os sonhos são feitos — uma risada seca e sarcástica emanou dos arbustos atrás do baobá. De onde estava, ela podia ver sua silhueta. Estava se movendo em sua direção.
— Acorde, Amana — ela sussurrou desesperadamente, mas já era tarde demais. O homem de um metro e oitenta já havia passado pelo baobá. As vinhas ainda estavam bem intactas. Na verdade, pareciam ter engrossado desde o som da voz retumbante de alguns segundos atrás.
— Não chegue mais perto.
Havia um tremor em sua voz. Ela permaneceu ali, muito abalada para se mover. Sua respiração ficou mais profunda e rápida, e seu coração tropeçava em seu próprio ritmo.
— Ou você vai… o quê? — Ele rebateu. — Eu não devoro garotas, especialmente adolescentes. Prefiro adultos. É um gosto adquirido. — Ele parou para olhar para Amana. Os olhos dela se moviam freneticamente, procurando uma saída. O horror em seu rosto o fez se arrepender do que disse.
— Eu estava brincando. Por favor, não chore — ele fez uma pausa, — e também não tente fugir, você só vai se machucar ainda mais — acrescentou, afastando o manto da testa. Ele fez um movimento para segurar a mão dela, mas se deteve. Percebeu que os olhos de Amana ainda estavam fixos nele com terror, incapaz de desviar o olhar.
— Juro que não quero lhe fazer mal — insistiu ele, levantando os braços em sinal de rendição. — Prometo que só quero ajudar. Além disso, parece que você precisa de uma mãozinha extra se quiser escapar desse pesadelo.
Silêncio. Um silêncio incômodo e enervante ecoou pela floresta.
— Então? Posso ajudar? — Disse isso sorrindo. Ele tinha um daqueles raros sorrisos tranquilizadores.
— Claro, que escolha eu tenho? — Amana pensou enquanto encolhia os ombros resignada.
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Amana era a única garota entre oito filhos. Seus sete irmãos, todos especialistas em seus ofícios, variavam de peixeiros a ferreiros, portanto, sua família nunca passava necessidade.
Seus pais pareciam se dar muito bem para a época deles. Ela vivia em tempos mais simples: os padrões eram mais baixos e todos pareciam muito mais felizes. Sua mãe, Amali, era parteira. Quando não estava ocupada trazendo vida ao mundo, estava dando vida à casa deles. Ela vinha de um vilarejo logo além da colina. Casou-se com o tecelão aos 19 anos de idade, depois que seu marido foi morto em um ataque ao gado.
— Nunca vi ninguém mais bela — o pai de Amana costumava dizer aos amigos em seus momentos de bebedeira.
Seu pai, Akida, um tecelão de profissão, sempre podia ser encontrado com fibras de sisal em uma mão, um cachimbo de tabaco pendurado no canto da boca e uma garrafa de bebida barata ao alcance do braço. Amana considerava esses três itens como suas ferramentas de trabalho. Mesmo com seu hábito preocupante de beber, rivalizado apenas pelo chefe do vilarejo, Beka, era o melhor pai que uma filha poderia desejar. Apesar de todos os seus defeitos, ele realmente amava as duas mulheres mais importantes de sua vida.
Amali é uma mulher pequena e de traços delicados. Bonita de um modo imperfeito, acessível. Não é o tipo de mulher que te deixaria paralisado, mas você certamente adoraria conhecê-la. Sua aparente vulnerabilidade esconde uma força da qual ela mesma não tem consciência. O relacionamento entre eles é caloroso e compreensivo, não demonstram companheirismo, mas são realmente apaixonados um pelo outro.
Amali teve quatro filhos com seu marido. Ele, também viúvo, teve quatro filhos com sua antiga esposa, que morreu dando à luz. Ele costumava dizer a Amali:
— Talvez se metade das parteiras deste vilarejo fosse tão boa quanto você, meu amor, provavelmente minha Siti estaria aqui — e, quase que instantaneamente, como se percebesse o que essas palavras causam em uma mulher, ele acrescentava: — mas então eu nunca teria conhecido você, minha querida. A vida é realmente inconstante, minha adorada Amali. — Ele dizia isso em meio a uma série de soluços. Amana sempre teve a teoria de que foi a dor que uniu seus pais. Ambos entendiam o que significava se importar com alguém e perdê-lo. Embora sua mãe nunca falasse muito sobre o ex-marido, Amana reconhecia que ele era um bom homem que não merecia uma morte tão violenta.
Amali encontrou o corpo do marido alguns dias após o ataque ao gado, com o rosto pisoteado por cascos de vaca e cortes profundos na lateral do abdômen e na perna. Seu corpo estava curvado em posição fetal; ele parecia tão tranquilo sobre a poça em que estava deitado. Não estava claro o que, entre a debandada dos animais e os invasores mascarados, o havia matado.
O homem do sonho deslizou sobre as vinhas grossas. Seu manto pesado se acomodou sobre o leito das ervas daninhas, curvando-as a ponto de arrancá-las, apenas para se erguerem novamente quando ele passava. Sua aura era firme, mas reconfortante, confiante, mas gentil. Ele tinha um jeito de fazê-la se sentir em paz, mesmo que tivesse acabado de conhecê-lo.
O tempo passava muito rápido na terra dos sonhos, trazendo um novo significado para a expressão “fração de segundo”. De alguma forma, sempre parecia que ela havia percorrido uma distância maior do que deveria em um período muito curto de tempo. A transição do tempo era muito rápida, rápida demais.
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Enquanto tentava decifrar o tempo, ocorreu-lhe que não havia perguntado para onde estavam indo. Estavam no meio do campo de lavanda, todas florescendo entre a grama, seus pés descalços desfrutando do chão acarpetado e do cheiro do orvalho da manhã.
— Delfins? — pensou ela. Eram as flores favoritas de Jelani.
— Não, não são Delfins — respondeu ele. — Sim, posso ouvir pensamentos — acrescentou, se antecipando à próxima pergunta dela.
As lavandas trouxeram de volta a lembrança dela e de Jelani, seu meio-irmão, caminhando pelas montanhas a caminho de visitar o túmulo de sua falecida avó – de quem ela tinha recebido o nome – há alguns anos. Jelani sempre parava para colher um delfim no caminho e dava detalhes desnecessários sobre eles, incluindo a época do ano em que estavam florescendo. Tudo o que ele sabia sobre flores vinha de sua avó. Jelani sempre falava dela com muito carinho.
— Ela era uma força da natureza. Apaixonada em seus gostos e desgostos — ele costumava dizer.
Ele a descrevia como sendo incrivelmente forte para sua idade. Ela era conhecida por sua imaginação vívida ao contar suas histórias e pela quantidade insana de tempo que passava dormindo. A nostalgia era sempre o tema quando eles percorriam aquele caminho pela montanha. Amana ainda não entendia a obsessão que os dois tinham pela natureza, mas não se importava com isso, pois adorava estar na companhia do irmão.
— Você não acha que é um pouco intrusivo ficar ouvindo os pensamentos das pessoas? — Ela saiu abruptamente de sua memória.
— Uuum, não. Isso é tudo que eu sei. É normal para mim. Seria muito silencioso se eu não fizesse isso.
— Caramba, ele é bom — Ela pensou.
Ele deu um sorrisinho debaixo da capa por causa daquele pensamento. — Você precisa acelerar o passo.
— Sim, sobre isso. Para onde estamos indo? — Ela perguntou. Não dava para saber se ela estava preocupada ou apenas curiosa.
— Hã? Oh, logo ali na frente. Quero que veja algo antes de voltar para casa.
— Tá bom. Mas o que é esse lugar?
— Nós a chamamos de “Sala dos Escritores”.
— Você acha que chegaremos lá antes do amanhecer?
— Você tem algum outro lugar onde precisa estar?
Eles se encararam por um momento e continuaram em direção à casa mal iluminada no horizonte.
— O que você escreve lá?
— O destino.
— Destino? — Ela para e o encara como se esperasse uma explicação.
— Destino.
— Você está falando sério? — Ela para e fica olhando para ele. — O destino de quem? — Ela continua. — Por que o destino? Espere, você quer dizer que o destino é escrito? Isso não é uma coisa do universo? Como o alinhamento das estrelas e coisas assim?
— Vou responder todas as suas perguntas assim que chegarmos lá.
— Por que precisa de mim lá?
— Para escrever.
— Escrever o meu destino? Isso não é, sei lá, um pouco contraintuitivo? Anticlimático, no mínimo. Bem, pelo menos para mim.
— Não, seu destino foi escrito há muito tempo. Agora você escreve o de outra pessoa.
— Quem foi que escreveu que eu deveria nascer de um bêbado e uma viúva? Isso é simplesmente triste — disse ela com desdém.
— Sua avó. Ela era uma mulher adorável. É triste que sua história tenha tido o fim que teve.
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Amali observava a respiração superficial de sua bela adormecida. Como todas as crianças, não contaminadas pelo mundo ao seu redor, Amana parecia tão tranquila quando dormia. Ela admirava sua inocência em relação ao mundo e como ela não tinha consciência de sua crueldade. Amali sempre desejou que sua filha tivesse uma vida melhor do que a dela. Rezava todas as noites para que o universo conspirasse a seu favor.
— Que ela nunca conheça a dor — ela sempre sussurrava para o vento. Amali se esticou sobre a filha adormecida e pegou uma colcha na cadeira oposta, tomando muito cuidado para não acordá-la. Esse momento a fez lembrar de quando Amana era bebê, sempre agitada, mesmo enquanto dormia. Ao menor movimento, ela passava a tarde inteira confortando-a e implorando para que dormisse.
Perdida nessa lembrança, só volta à realidade quando Amana tenta ficar mais confortável. Ela coloca a colcha sobre a filha como se fosse um importante artefato e se afasta, olhando para ela mais uma vez enquanto se dirige ao sol da tarde, rumo ao mercado.
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— Você vem de uma longa linhagem de escritores, Amana — o homem encapuzado quebra o silêncio.
— Escritores de Destino, você quer dizer.
— Exato. Sua avó, antes de você, estava conosco neste mesmo local. Assim como a mãe dela, antes dela.
— Você disse que meu destino foi escrito por minha avó. Posso saber o que é?
— Sim, você pode. Assim que terminar de escrever.
— Mas como posso saber o destino de pessoas que eu nem conheço?
— Você simplesmente saberá. Escreva o que vier à sua mente.
Amana não conseguia acreditar que o destino do universo estava escrito em uma casa mal iluminada no meio do nada. Não parecia justo que guerras tivessem sido declaradas, batalhas vencidas, pessoas assassinadas, vilarejos dizimados por doenças com o simples traço de uma caneta e, pior ainda, por pessoas desconhecidas e comuns como ela.
Isso deve ser o que significa ter o peso do mundo sobre os ombros, ela pensou consigo mesma.
Deve ser essa a sensação de ser o chefe do vilarejo: tanto poder, mas tão impotente. Não é de se admirar que Beka nunca consiga parar de beber. Essa situação fez com que ela sentisse pena do chefe do vilarejo deles. Ou talvez seja assim que se sente ao ser o líder da família, como seu pai. Quando todos dependem de você, os riscos são maiores. Não há margem para erro, e mesmo quando se erra, ninguém lhe concede a graça ou a compreensão de que você precisa. Talvez seja por isso que ele encontre consolo no fundo de uma garrafa. Se as soluções não podem ser encontradas sóbrio, talvez estar bêbado torne menos assustadora a possibilidade de fazer a escolha errada.
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Amana vinha escrevendo há horas. Todos à sua volta também estavam ocupados com sua escrita. Ela imaginava que, como ela, todos eram escritores do “destino”. Ponderava sobre quais tipos de histórias eles estariam redigindo. Quem iria se casar com quem? Quem alcançaria seus sonhos de infância? Quem nunca passaria por sentimentos de inadequação, depressão e autopiedade?
Mais importante, quem sairia de tudo aquilo para viver uma vida feliz? Quantas pessoas teriam o final feliz que haviam sonhado? A mãe de quem veria o filho voltar da guerra? Muitas perguntas passaram por sua mente. Os seres humanos sem rosto sobre os quais estavam escrevendo. Talvez os outros também inventassem rostos como ela ou talvez os rostos que ela imaginava serem inventados fossem, na realidade, pessoas reais.
Nada mais naquele cômodo soava real. Tudo parecia uma fantasia. Algum tipo de universo paralelo onde os momentos mais importantes da vida de todos estavam sendo mostrados para quem quisesse ver.
— Quem escreve as partes ruins então? — ela dá um fim a seus lindos pensamentos. — O divórcio, o abuso, o assédio sexual, os suicídios, as torturas, a depressão, os surtos psicóticos, as mortes, o enterro de um filho, as doenças incuráveis.
— Quem escreve as partes não quistas da vida dessas pessoas? — ela pondera.
— Seriam as pessoas naquela sala — o homem encapuzado responde quase que imediatamente. Ele parecia sempre estar por perto quando você precisava, mas nunca antes disso, nunca o mistério.
— Por que eles estão separados? E por que eles têm as melhores vistas?
— Porque a escrita das desgraças tira muito de qualquer um — ele diz enquanto ajusta seu manto para levantar-se de sua mesa no canto do cômodo.
— Com toda essa carnificina que eles escrevem — ele continua —, o mínimo que eles podem ter é a visão do jardim florido. Isso compensa todo o resto.
— É por isso que eles estão fadados a escrever as partes feias da história e do futuro?
— Não exatamente!
Assim que ela abre a porta da sala do juízo final, ela é capaz de sentir o ar de desespero, ódio e medo — a nuvem escura que fica por cima de cada um deles; o sangue escorrendo de suas canetas, a miséria posta sobre suas colunas arqueadas e os pensamentos suicidas refletindo em suas testas. Então, quase que em um piscar de olhos, tudo se dissipou quando as estações mudaram no jardim florido e a ordem pareceu ser restaurada novamente.
— Eu já não deveria estar acordada?
— Bem, só se passou uma hora no mundo exterior. Sua mãe ainda não voltou, mas, se você quiser ir embora, pode. Posso mostrar o terreno se isso for algo que você esteja disposta a fazer.
Um silêncio constrangedor se instaurou entre eles. Amana não conseguia entender como ele conseguia dizer e ver tantas coisas trágicas e, ainda assim, como um bom anfitrião, realizar seu dever.
— Você me disse que posso ler meu destino…
— Ah sim, por aqui — diz ele, apressando-a para uma porta com uma placa escrita em negrito: Amana. (I)
Amana se assustou por um minuto e depois se lembrou de que tinha o nome de sua avó. Pelas histórias que tinha ouvido, ela sabia que Mama Amali era uma pessoa briguenta.
— A mulher mais jovial que já passou por esta terra — dizia sua mãe. Ela não se lembrava muito sobre a avó, exceto pelas tradicionais tatuagens no rosto. Seu livro tinha uma rosa desabrochando, sua flor favorita, com seu nome gravado na haste. Embora soubesse como era sua infância, ela ainda estava impressionada com a precisão com que sua avó a narrava na escrita.
Enterrada em seu conteúdo, a única maneira de o homem encapuzado chamar sua atenção era forçá-la a sentar-se em uma cadeira que ele puxou enquanto ela estava absorta. Ela leu sobre a morte de seu meio-irmão, seu favorito entre os sete.
— Mas ele é muito jovem — sussurrou ela enquanto lutava contra as lágrimas. Em poucos anos, ele se afogará. Nos anos que se seguiram à morte de Jelani, sua mãe entrou em depressão e o alcoolismo de seu pai piorou. Perder um filho pode despedaçar qualquer coração. Seus outros irmãos abandonaram o lar e só voltaram cinco anos depois, para enterrar a mãe.
O luto consumiu Amali e sua saúde se deteriorou com o passar do tempo. Amana assistiu sua mãe envelhecer dia após dia, a luz de seu olhar diminuindo. O peso da perda começou a ficar visível em sua frágil silhueta. Bebês não a deixavam mais contente. Ela não cantarolava suas melodias favoritas enquanto tomava banho. A morte de Jelani tirou tudo e mais um pouco dela.
A antecipação da dor de perder sua mãe controlava a vida de Amana. Ela obviamente conseguia ver os sinais. Seu pai parecia alheio à saúde de sua mulher. Ambos haviam perdido seu chão. O luto agora era morador permanente de sua residência, sempre sentado no canto, esperando o momento em que seus serviços seriam requisitados.
Para o pai de Amana, perder a esposa foi a última gota. Amana encontrou seu corpo sem vida em uma manhã, enrolado no cachecol favorito de sua esposa. A morte estava presente na casa mais uma vez, mas dessa vez, ela parecia ter sido chamada ao invés de ter surgido ao acaso. Ele morreu por conta de uma poção de um alquimista local. O pai de Amana havia implorado ao alquimista para o ajudar a acabar com seu sofrimento. Os dois eram amigos desde novos, eles até haviam sido circuncidados juntos. Não havia nada que não dividissem um com o outro.
— O que você está me pedindo não é xarope para a garganta, Akida. Isso vai te matar — disse o Alquimista para o pai de Amana.
— Eu sei o que isto faz, Asani, mas eu não posso mais viver assim…
— Você acha que isso irá te ajudar? — o Alquimista o interrompeu. — Vamos lá, já passamos por isso antes.
— Você não conhece o luto antes de ver as pessoas que ama morrerem nos seus braços — o pai de Amana olha para baixo, incapaz de manter contato visual.
— Eu continuo a reviver na minha cabeça o dia em que Amali morreu, como se fosse ontem. Seu rosto pacífico estava tão calmo, parecia injusto que ela não pudesse o mostrar para o mundo de novo. O quanto você acha que um homem pode aguentar antes de se dar por derrotado? Antes de tudo o sufocar a ponto de não haver retorno. Você não está cansado? Não podemos parar com isso e dar um descanso para nossos corações exaustos?
— Eu não estou louco, Asani — ele continuou. — Eu já pensei sobre isso. Essa é minha solução. Dói demais, eu não consigo nem explicar.
O Alquimista olhou para seu amigo que desesperadamente tentava o convencer do impensável. Ele não conseguia acreditar que estava convencido. Conseguia ver como seus olhos brilhavam de lágrimas não derramadas. É o jeito em que caíam que denunciava a tristeza que em outros momentos ele escondia com maestria. Ele limpou os olhos com a parte de trás de seu pulso enquanto oferecia seu último dinheiro para seu amigo mais antigo. Ele entendia exatamente como o outro se sentia porque ele também estava batalhando contra seus próprios demônios.
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— Por que você está me permitindo ler isso? — ela perguntou enquanto limpava suas lágrimas.
— Você pediu, Amana. Eu não sou capaz de negar sua curiosidade.
Amana se abaixou até ficar sentada sobre as coxas, tentando ficar o menor possível, e então, quase em um sussurro, perguntou:
— Mas você sabe que isso vai ficar comigo por muito tempo. Por que me dar esse fardo? — Enquanto ela se balançava suavemente para frente e para trás, sem nem mesmo perceber que estava fazendo isso.
— É triste, eu sei, e é por isso que ninguém pode conhecer seu destino. Não é aconselhável.
— Mas deixou que eu soubesse. — Quanto mais ela falava, mais sua voz tremia.
— Isso porque você não se lembrará de ter estado neste lugar quando acordar. Você só acordará se sentindo renovada. Com mais disposição para…
— Quer dizer que você vai apagar minha memória?
— Eu nunca seria capaz de fazer isso. Você apenas não vai se lembrar disso quando passar pelo véu. Essa realidade não pode existir na sua linha do tempo. Se você lembrar disso, tudo vai entrar em desequilíbrio e decisões difíceis terão de ser tomadas.
— Alguém já foi capaz de se lembrar?
— Não que eu saiba.
— O que acontece se eu começar a me lembrar?
— Eles irão me enviar para restaurar a ordem.
— Como exatamente você faz isso?
— Restaurar a ordem?
— Sim.
— Oh, quer dizer que você morre.
— Eu morro ou você me mata?
— Qual dessas opções vai fazer você se sentir melhor?
Amana começou a pensar sobre um modo de lembrar dessa terra mística, de amar sua mãe ferozmente e fazer com que seu pai seja recíproco com esse amor. Como fortalecer os laços entre seus irmãos e a si mesma. Ela gostaria de lembrar de checar se o Jelani está bem e de abraçá-lo um pouco mais forte. Estudar suas expressões faciais e memorizar o som de sua voz. Ela gostaria de lembrar de sua mãe com um sorriso no rosto e um saltitar em seu andar. Ela queria tudo isso, mas não sabia como conseguir.
— Você nunca pode ter tudo. Você pode ter opções, mas nunca tudo com que sonhou — diz o homem encapuzado, interrompendo seus pensamentos.
— Você está me dizendo que não há nenhum jeito de me lembrar de tudo isso?
— Sim, você pode se lembrar — ele pausa — ao ficar aqui, mas isso quer dizer que nós iremos te apagar da existência. Ninguém lembrará de ter lhe conhecido. Isso não muda o destino deles, nem o de sua geração. Você terá a liberdade de os visitar em seus sonhos, mas nunca poderá voltar.
— Isso não me parece uma opção — ela retrucou.
— Tudo tem um preço, Amana.
— Então ou eu vou voltar e nunca mais me lembrar de nada disso. Eu não vou lembrar das coisas que estão por vir, da fome, das injustiças, da pobreza ou até mesmo do amor que quero dar, intencionalmente ou não, ou eu fico e eles esquecem de mim?
— Você é uma boa pessoa, Amana.
— Eu vou tentar me lembrar disso.
Os dois riem levemente da piada não intencional e se dirigem para os campos. Ambos sabiam que ela não se lembraria dessa conversa quando fizesse a travessia.
— Eu irei te rever algum dia, homem encapuzado?
— Talvez nos seus sonhos. Tentarei lhe visitar quando eu puder.
— É hora de você acordar. Amali já deve ter voltado.
— Um dia inteiro?
— Só se passou um pouco mais de uma hora. Ah, e seu irmão quer jogar um balde de água fria em você. Se eu fosse você, eu acordaria.
Amana acordou de seu sono com o som de crianças brincando lá fora e o rosto travesso de Jelani a observando. Ela se contorceu para fora dos lençóis, chutando enquanto ela tentava achar seus chinelos debaixo da cama. Suas articulações passaram raspando por algo gelado e não familiar, o que a deixou mais dispersa.
Epílogo
O homem encapuzado notou nuvens cinzentas no horizonte, uma condição climática que ele não via há um milênio. Através do véu, ele podia ver Amana tentando impedir Jelani de ir pescar naquela tarde. Seu pai, bêbado e alheio na baía ao lado deles, está concentrado em como tecer a cesta mais bonita para sua esposa. As brigas deles não parecem mais incomodá-lo.
— Me diz o porquê de eu não poder ir e eu vou sentar com você e Baba até você me dizer que posso partir — disse Jelani.
— Mas não posso lhe dizer o porquê. Eu mesma não sei o porquê. É só um pressentimento — respondeu Amana, agora frustrada por não estar ganhando a discussão.
— Então, eu vou indo porque teremos peixe no jantar e eu sou o pescador da família.
Jelani tinha argumentos fortes, então ela ficou parada enquanto via seu irmão desaparecer em direção ao rio. Amana ficou ali, sentindo-se pesada e enraizada no chão. Ela olhou em volta, com os olhos se ajustando à luz da tarde, e pensou: — É agora.
Ela voltou à realidade depois que seu pai a chamou. Ela deu um sorriso, piscando até suas lágrimas sumirem, e foi ver o que ele queria.
— Ela está se lembrando! — o homem encapuzado diz, escorregando em seu manto e se apressando até a sala dos escritores do “juízo final”. A história de Amana precisava ser reescrita.
Chao Shete é uma jornalista experiente que atualmente trabalha com Comunicação Corporativa. Quando ela não está buscando material para seus ensaios e trabalhos de ficção, ela está trabalhando no blog pessoal dela, o qual ela tem mantido por cerca de cinco anos.