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Sapatos Favoritos | Gerald Dean Rice

Tradução de “Favorite Shoes” (Omenana, Issue 25, March 2023)

Traduzido por/Translated by:

Luís Felipe Franco de Mello

Kifa sentou-se na escada com seu vestido preto, encarando os

sapatos do seu falecido marido. A pastora Waters estava conversando

com Vdekja e Tod, a pequena reunião de amigos que comiam o que Heriotza havia trazido. A reverenda tinha realizado uma ótima missa, mas parecia estar desconfortável ainda vestindo suas roupas de ritual, puxando suas mangas de forma alternada e sorrindo com a suprema bondade enquanto o irmão de Kifa continuava a falar.

–Do jeito que eu vejo, a Vida e a Morte são os dois lados de uma mesma moeda ou talvez o contrário uma da outra, Tod disse.

– A Vida está sempre trabalhando, entregando novas vidas como uma espécie de cozinheira de restaurantes de fast food e tudo que a Morte quer é misturar toda aquela vida e beber da forma mais rápida e fácil possível. Sem o apreço de quão bonita a vida é, ou quão complexa ela é. Tod fez uma longa pausa, o suficiente para tomar um gole de seu copo de plástico. – A Vida  sempre dá esses espetáculos maravilhosos,

percebe… – Ele coloca uma almôndega na boca. –A Morte sempre toma.” Ele mastigava enquanto brincava rolando um palito de dente entre o dedo polegar e o indicador. –Desde o nascimento, a Morte está sempre bebendo aquilo que a Vida acabou de servir.

–Mas o que isso significa? – Vdekja disse, igual a um desenho animado dando de ombros. –A Morte é algo que todos conhecemos. O que isso significa?

–Eu não sei – Tod dando de ombros. – Talvez Mort fosse mais saboroso que a maioria de nós. Talvez o seu canudo tenha chegado mais perto do fundo. Não olhem para mim. Eu não sou um especialista.

Tod nunca teve farpas na língua. Ele era o irmão mais novo de Kifa, por isso Vdekja e a pastora Waters lhe davam liberdade, mas ela viu o desconforto dos seus amigos e a hesitação no sorriso da reverenda.

Era mais uma daquelas inconveniências temporárias que seriam esquecidas em breve, o único resquício era o desconforto persistente de todas as pessoas que escutaram aquilo.

O sermão da pastora Waters tinha sido apaixonante, pessoal, educado. Ela tinha captado tanto a essência do seu marido quanto Kifa poderia esperar. O silêncio da reverenda agora, levando em consideração a gafe do irmão de Kifa, foi para ela. Ele deveria começar a pedir recibo para cada pico que ele pagava. Seus erros eram tão comuns quantos sapatos nos pés.

Por falar em sapatos…

Kifa sentou endireitando-se, seus olhos retornaram novamente para aquilo que ela falhou em ver desde que voltaram do cemitério. Fazia meses que ela não via os sapatos.

Eles estavam bem ali, na parte de baixo da sapateira, como sempre tinha estado quando não estavam nos pés do marido. Ele estava doente há tanto tempo… ele tinha ficado de cama por tanto tempo antes de finalmente se render.

–Você está bem, minha querida? –  Heriotza perguntou, de repente ao seu lado. –É uma pergunta besta, me perdoe, mas eu vi sua cara agora.

–Não. Me desculpe. Eu só… – Kifa suspirou, apontando com seus olhos para o par de sapatos na sapateira. –Esses são os sapatos do Mort. – A outra mulher virou-se para olhar. – Os sapatos favoritos dele. Quando saía de casa, ele usava esses. Não importava a ocasião. Aniversários, formaturas, velórios— exceto para o seu próprio.

Ela mordeu seu lábio como se pudesse mastigar suas próximas palavras ao invés de dizê-las. –Eu odeio esses sapatos. Kifa riu e Heriotza a acompanhou. –Sabe qual é a pior parte?

Sua amiga agarrou sua mão, aparentemente sentindo que a próxima frase era difícil de ser dita.

–Eu não me sinto mal. Quero dizer, eu me sinto. Eu amo ele e sinto sua falta. Mas não me sinto mal por ele finalmente ter partido.

–Minha querida. Ele estava sofrendo. Você apenas está aliviada que tudo acabou. Ela entrelaçou suas duas mão sobre as de Kifa e apertou-as gentilmente.

Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto dela. –Eu me sinto mal, por não me sentir mal. Isso faz algum sentido?

–Minha Kifa… você é uma boa mulher. Uma mulher amável. Mort foi um bom homem. Ele conhece seu coração e sabe que estava partido mesmo antes de ele partir. As peças não precisam mais encaixar como antigamente para que você as deixe sarar.

Heriotza era uma boa amiga, mas Kifa não estava à procura de conselhos. Kifa percebeu que precisava sentir o que sentiu. Ela se sentiu vulnerável e sozinha e precisava se cortar com os pedaços do coração partido.

A doença que havia crescido dentro dele tinha esperado nove meses. Implorava para que ela olhasse e desafiava-a a desviar o olhar. Se tivesse sido repentinamente, teria causado uma pausa em seu luto e um ponto definido no qual ela teria sido capaz de se curar. Ao invés disso, a plasticidade da sua tristeza tinha se fixado em sua alma como um bandeide; cada memória de Mort, mesmo doente ou saudável, como um rebarba, quando ela arrancava o bandeide.

–Olha, mana, cê tá bem? – Tod veio com um punhado de lenços de papéis. Ele era bom naquilo que ele era bom, e ela pegou alguns com gratidão para enxugar os olhos.

–Eu estou bem. Eu só vi…Eu só vi uma coisa que me lembrou do Mort. Ela assoou o nariz, depois cruzou seus braços sentindo um arrepio. –Acho que preciso me deitar.

–Almont e eu vamos arrumar as coisas e vou mandar ele pra casa – Heriotza disse. –Eu vi uma garrafa de Prosecco[1]na geladeira. Eu e você vamos ter uma noite das meninas.

Kifa não pensava que estaria disposta a ter uma visita, mas não teria forças para suportar a decepção no olhar da melhor amiga. Seu irmão beijou seu rosto e a abraçou antes de ela subir as escadas. ([1] vinho branco italiano.)

Kifa voltou, descendo as escadas e catou os sapatos favoritos do marido e os abraçou contra o peito.

–Uma boa noite para todos vocês – ela disse. – E obrigada por virem.

O quarto deles era subindo as escadas, à esquerda. Kifa atravessou pelo batente da porta e deitou-se, com seu vestido preto, sobre a cama que dividiu com Mort por tantos anos, com os sapatos ainda em seus braços.

Eles nunca tiveram filhos — seu maior arrependimento foi que não havia uma parte dele ainda no mundo. Ela era involuntariamente uma pedra enraizada após a sua perda. E apesar de Heriotza estar sempre presente com ela, ela estava sozinha.

Mort deveria ter sido enterrado com esses sapatos.

Kifa não sabia como pôde esquecer deles por tanto tempo. Talvez ela havia se tornado imune à presença deles, como placas em uma estrada por onde você já passou muitas vezes. A invisibilidade deles tinha sido provavelmente fruto de uma ilusão de óptica. Os sapatos do homem que literalmente andou por toda parte com eles e então subitamente não podia sequer andar da sua cama para o banheiro.

Ver eles um instante atrás foi como um chute em seu coração, pior que os últimos dias de vida de seu marido.

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Ela se espalhou pela cama, cobrindo o máximo que conseguia do território dele, reafirmando a sua reivindicação contra o que tirou Mort dela.

Ela chorou nos sapatos dele até cair no sono.

Kifa percebeu que estava despertando. As pesadas cortinas tinham sido fechadas, mas parecia que ainda deveria ter luz, apesar da escuridão do quarto.

–Olá? – ela disse, o tremular de sua voz era o único indicativo de que estava com medo. –Ainda tem alguém aqui? – Kifa não tinha motivos para sentir medo, mas tinha algo que fazia ela pressentir o perigo. Heriotza deveria estar ali, a não ser que tivesse mudado de ideia e ido embora. Antes de subir as escadas, Kifa não queria nada além de ficar sozinha, mas agora torcia para que a melhor amiga não tivesse ido embora.

Ela se arrastou para fora da cama e foi em direção à porta do quarto.

–SKRRP–

Alguma coisa estava na casa. Aquele não parecia o som de ninguém que já tivesse estado em sua casa, e soou mais…como algo orgânico e menos como uma máquina de lavar desequilibrada ou o tilintar metálico da ignição de um forno. Tábuas rangiam e estalavam no andar de baixo, enquanto algo se movia livremente.

Ela envolveu a mão na maçaneta e girou-a o mais lento que podia. Um ranger sussurrante quando as entranhas metálicas deslizavam entre eles ou por dentro deles—-Kifa não fazia ideia como aquilo funcionava—ecoou pelos seus ossos da sua mão até sua boca e ela cerrou os dentes, abafando o minúsculo grito que anunciaria que estava ali.

A racionalidade monologou que quem ela ouvia lá embaixo só podia ser Heriotza. Kifa disse palavras para se tranquilizar, enquanto puxava a porta e espiava a nítida escuridão do corredor.

—SKRRP—

Kifa jogou a cabeça para trás, uma brisa de ar se esgueirou para dentro de sua boca. O primeiro som veio de algum lugar do andar de baixo. Talvez da cozinha, talvez da sala de jantar ou talvez da entrada. Mas o segundo definitivamente estava mais próximo, acompanhado pelo ranger rítmico de passos subindo as escadas.

Ela precisava chamar a polícia. Seu celular não estava na mesa de cabeceira, onde ela o deixava todas as noites. Em sua inquietação, antes de ter subido as escadas, ela provavelmente o deixou na sala de estar. Não tinha telefone fixo já fazia quase 10 anos, deixando a ela a única opção de se esconder.

Kifa tinha apenas os dois espaços clichês para se esconder. Embaixo da cama havia várias caixas de sapatos e tirá-las de lá apenas indicaria exatamente onde ela estava. A porta do armário estava parcialmente aberta e era grande. Talvez ela passasse despercebida.

Ela forçou sua entrada, a porta rangeu levemente quando ela fechou.

—SKRRP—

Estava do lado de fora do seu quarto, raspando a rocha que era seu senso de segurança o seu senso de segurança. Kifa achou um lugar na parte de trás

do armário e sentou-se, encolhendo as pernas em posição fetal e as abraçando. Então ela percebeu que ainda estava segurando os sapatos do Mort. Ela queria agarrar-se a eles, como uma âncora fixando-a a uma ideia de calma. Mas ela os botou no chão para que tivesse suas mãos livres para que ela pudesse puxar seu vestido para cima dos pés descalços. Talvez se ela fosse confundida com uma pilha de roupas, poderia passar despercebida.

O andar estendido de pé se arrastando pelo chão estava dentro do quarto. Eles deram a volta pela cama e então pararam — talvez a coisa estivesse olhando debaixo da cama. Ela se perguntou por um momento porque é que pensava no que quer que estivesse no seu quarto era algo e não alguém. Talvez por ser algo indefinido, que ela não tinha visto um rosto para tornar uma pessoa completa.

Kifa tapou sua boca com as mãos, pronta para agarrar qualquer som errado que ela pudesse fazer contra sua vontade.

—skrrp—

Estava próximo do armário. Dobradiças, que nunca desejaram óleo, rosnaram e ela não tinha certeza absoluta de não ter gemido com elas. Ela conseguia distinguir tons de preto e via o movimento de formas indistintas, apesar da falta de luz. À medida que aquilo se aproximava, Kifa desejou fazer parte da parede, que sua carne fosse a mistura de algodão e poliéster do seu vestido e que sua respiração fosse o fio de ar que sai pelo duto de ventilação do alto da parede.

Dois pés pararam bem na frente dela. Ela mal os conseguiu distinguir. Aquilo não tinha acendido a luz, movia-se como se conhecesse sua casa tão quanto ela mesma. As roupas acima da cabeça dela sacudiram e ela percebeu com o estalar de ossos nus, que aquilo estava inclinado acima dela, a cabeça daquilo separava camisas e calças penduradas.

Kifa estava emocionalmente e fisicamente desarmada, vendo os ossos longos e finos dos dedos indicador e do meio, divididos como em um sinal de “paz e amor” de ponta cabeça. Mas eles não estavam indo em sua direção, ao invés, agarraram a língua dos sapatos do Mort. Esse visitante já tinha estado em sua casa antes, embora a última vez tenha sido pelo último suspiro de seu marido.

Enquanto os calçados de Mort eram levados para fora de sua vista, os pés arrastados afastaram-se. Algo ficou no rastro daquilo e Kifa pensou que poderia ter estendido seu braço e tocado na bainha da coisa, mas ainda tinha muito medo para se mexer. Aquilo retirou-se rapidamente, o ar do seu lugar anterior contraiu-se para um ar menos úmido, causando uma respiração mais curta. Passou um longo momento antes de Kifa se arrastar engatinhando, tateando de volta para seu quarto.

Elas nunca tinham se encontrado oficialmente e ela esperava não aparecer no seu radar durante muito tempo. Kifa sentiu uma onda de alívio inesperado quando a mensageira de seu marido levou-lhe os sapatos.

Mas quando sua mão tocou a tampa da caixa de sapatos no chão do carpete, ela parou. Kifa foi apalpando tudo até encontrar a caixa que estava embaixo da cama. Então mexeu no interior da caixa.

Seu par de saltos altos favoritos que estava lá tinha desaparecido.


Gerald Dean Rice possui vários contos e alguns livros de autoria, incluindo Absolute Garbage, Total Nonsense, e Utter Ridiculousness. Ele possui um Bacharelado em Inglês da Oakland University e vive em Metro Detroit.

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