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Fluindo por Dentro | Lauren Beukes

Tradução de “Slipping” (Omenana, Issue 24, December, 2022)

Traduzido por/Translated by:

Kim Patrice Santiago Sarmento

Sophia Ribeiro Ferreira

Fluindo por Dentro

1. Vida Extravagante

O calor pressiona o táxi, tentando encontrar uma maneira de entrar pelas janelas seladas e o ar-condicionado barulhento. Prédios de apartamentos estreitos passam rapidamente de ambos os lados da via expressa, interrompidos ocasionalmente por um armazém de alguma megaloja qualquer. Poderia ser a Cidade do Cabo, pensa Pearl. Poderia ser qualquer lugar.

Vinte e três horas de viagem até agora. Ela nunca tinha estado em um avião antes.

— Então, qual é a melhor coisa sobre Karachi? — Tomislav, seu promotor, pergunta ao motorista, tentando quebrar o silêncio opressivo. – Os três estavam atordoados pela jornada, a garota, o promotor e o cirurgião, que não tirou os olhos do telefone desde que entraram no carro porque está tentando marcar uma reunião.

O condutor pensa sobre isso enquanto puxa o pequeno bigode: — Uma coisa é que esta é uma estrada muito boa. Sharah e Faisal[1]. Quase nunca há engarrafamento e, se chover, a estrada nunca alaga.

— Excelente. — Tomislav se inclina para trás, derrotado. Ele dá a Pearl um sorriso encorajador, mas ela não se sente encorajada. Ela assistiu à Copa do Mundo e às Olimpíadas na TV; ela sabe como deve ser. Ela olha através da janela, se recusando a pestanejar caso as lágrimas venham.

A estrada se estreita ao entrar na cidade e o trânsito se intensifica, caminhões buzinando e riquixás (pequena carruagem puxada a mão) cobertos de adesivos reflexivos como bolas de discoteca, que cintilavam ao sol. Passam pela cidade antiga, com seus grandiosos prédios em ruínas de tempos passados, e entram na rede de favelas de Saddar (bairro de Karachi), com barracos de concreto se apertando uns nos outros.

[1] Estrada em Karachi, Paquistão

— Kachi abadi. — O motorista lhes diz.

Pearl pronuncia baixinho. — Pelo menos os barracos não são de lata. E essa é uma diferença.

Tomislav aponta para os grafites em outro alfabeto e toca no joelho de plástico dela. — Sinais de gangues. Assim como na Cidade do Cabo.

— Ah, eles são bandidos, com certeza, — diz o motorista. — As mesmas pessoas governam o país.

— Vocês têm bandidos no governo? — Pearl está chocada.

O motorista faz um barulho com a língua e encontra o olhar dela no espelho retrovisor. — Você é uma das corredoras?

— O que te deu essa ideia? — Dr. Arturo diz, sem olhar para cima. É a primeira coisa que ele diz o dia todo. Seus polegares, instrumentos incisivos, batem na tela do telefone. Pearl esfrega as pernas conscientemente, onde os tendões são visíveis sob a junta do joelho e se entrelaçam com os neurocircuitos. — É uma vitrine. — Ele respondeu quando ela perguntou por que não poderia parecer pele. Alguns dias ela acha bonito. Mas na maioria das vezes, ela odeia ver o avesso de si mesma.

— Por que você acha que está no Paquistão? — o motorista ri.

— Você acha que alguém mais deixaria isso acontecer em seu país? — Ele esfrega o polegar e os dedos se referindo a dinheiro e os lança ao vento.

2. Repleto de Bondade

Antes da corrida, um banner enorme do +Games está pendurado por cima da entrada do Instituto Parsi de Karachi, ou IPK. Um antigo edifício colonial que foi ampliado para acomodar os corredores, a pista foi construída sobre o antigo campo de críquete e adentrava as favelas. A escola original foi transformada na vila dos atletas, as salas de aula foram convertidas em alas médicas individuais para atender às necessidades únicas deles. A de Pearl, por exemplo, tem unidades bio-herméticas e superfícies esterilizadas. A janela foi fundida para evitar a entrada de ar poluído.

Na sala vizinha, instalaram geradores extras para a Charlotte Grange depois de ela ter ligado o seu exoesqueleto e derrubado a energia de todo o prédio. Pearl podia ouvi-la resmungando através das paredes. Ela não sabe o que é que a Siska Rachman tem, mas será que, tecnicamente, quem teve morte cerebral ainda precisa comer?

Ela se senta na beira da cama, folheando o programa oficial enquanto Tomislav anda curvado sobre o telefone pelo quarto com a mão descansando no nariz. — Ajda! Qual é? — ele diz, daquele jeito eslavo que faz a primeira parte da frase soar pesada. Como o próprio Tomislav, ainda carregando seu volume de halterofilista (levantamento de peso olímpico) todo comprimido no peito e pescoço. Ele não compete mais, mas os esteroides o mantêm em forma. As luzes de néon e o brilho branco das paredes fazem seus olhos parecerem mais azuis, sua pele mais pálida. — Pêssego — ela aprendeu na escola, como se pêssego e marrom fossem magicamente menos divisivos do que preto e branco, e palavras pudessem resolver tudo. Mas a pele de Tomislav não é o laranja quente de um fruto de verão, é como o chá com leite que ela bebe em casa.

Tomislav tem pelos negros e grossos nos braços. Ela perguntou sobre isso quando se conheceram na casa do Amado no morro. Catorze anos, muito jovem e muito raivosa para respeitar os mais velhos, apesar de sua mãe ter engasgado com sua grosseria e ter batido na cabeça dela.

Tomislav riu: — Testosterona, gatinha. — Ele tocou a pennugem acima do lábio superior dela. — Você também tem, é isso que te faz tão forte.

Desde então, ele a obrigou a fazer depilação a laser em todos os seus pelos indesejados. No esporte, imagem é tudo. Até mesmo neste.

Ele a vê olhando para ele e fala mais alto. — Você quer conseguir uma reunião, Arturo, precisamos ter algo para mostrar. — Ele dá um toque dramático no telefone para encerrar a chamada. — Aquele cara! O que ele acha que  estou fazendo o dia todo? Tudo bem, gatinha? — Ele a pega pelos ombros, faz uma leve massagem. — Você tá se sentindo bem?

— Bem. — Mais do que bem, com as vozes da multidão vibrando baixo através do concreto, e a linha de largada puxando suas entranhas, passando por aquela porta, atravessando a quadra, descendo a rampa. Ela viu pessoas subindo nos telhados ao redor da pista com cobertores.

— Essa é minha garota. — Ele arranca o programa das mãos dela. — Por que você está olhando para isso? Você conhece cada movimento dessas garotas.

Ele se refere a Siska Rachman. É só disso que todo mundo quer falar, os jornalistas, as corporações. Pearl está cansada disso, das entrevistas para canais que ela nunca ouviu falar. Ninguém lhe disse quanto disso seria falar sobre corridas.

— Pronto quando você estiver. —  Dr. Arturo diz na cabeça dela, falando pelo implante de áudio em sua cóclea. Ele volta a ficar online como se nunca tivesse saído, verificando os diagnósticos. — Controle sua adrenalina, Pearl. Você precisa estar calma para a instalação. — Ele costumava narrar os processos químicos, os balanços de hormônios, a captação de oxigênio nano-amplificada, a mudança das articulações robóticas, a explosão de dopamina, mas parecia demais como estar na escola; palavras sendo enfiadas em sua cabeça e todas inúteis de qualquer maneira. Você não precisa nomear algo para entendê-lo. Ela sabe como se sente quando atinge seu ritmo e o mundo se abre sob seus pés.

— Ele está pronto. — Ela repete para Tomislav. — Tudo bem, vamos começar o show.

Pearl obedece e levanta sua camiseta com o logotipo da bebida energética russa – um dos patrocinadores de Tomislav, embora isso valha apenas uns trocados. Ela conheceu os homens que pagaram para que ela estivesse aqui na casa de vidro no morro, usando camisas de golfe chamativas, sapatos e relógios brilhantes. Ela nunca os viu balançar um taco nem sabe seus nomes, mas todos queriam apertar a mão dela e tirar uma foto com ela.

Ela toca toda a costura rígida que corre em forma de um gancho em J ao lado de seu estômago, paralela à cicatriz de sua histerectomia, e rasga a pele de velcro.

— Me deixe. — Tomislav diz, ajoelhando-se entre suas pernas. Ela mantém a carne aberta enquanto ele coloca uma mão dentro de seu abdômen. Não dói, não mais. O velcro libera um anestésico local quando abre, mas ela pode sentir um desconfortável puxão dentro, como uma cólica.

Tomislav torce as válvulas de ambos os lados, desconecta o estômago dela e o retira. Ele o coloca em uma biocaixa estéril e o conecta a um fluxo sanguíneo. Quando ele se vira de volta, ela já está enrolando o acordeão do intestino artificial, como um mágico puxando fitas da palma da mão. Isto cheira a bactérias de laboratório, com um leve odor de fezes. Ela entrega a Tomislav e ele franze o nariz.

— Isso apenas demonstra, — ele diz, dobrando a tubulação plástica enrugada e guardando-a. — Que você pode tirar a carne do ser humano, mas eles ainda estão cheios de merda!

Pearl sorri obedientemente, embora ele tenha feito a mesma piada nas últimas três semanas – desde que instalaram o novo sistema.

— Quase lá. — Ele sustenta o biodistribuidor e ela acena com a cabeça e desvia o olhar porque isso a deixa enjoada de assistir.

— É um bioplug elegante, fino como uma hóstia de Comunhão e repleto de bondade. — Diz o Dr. Arturo. — É como um cereal matinal fortificado. Hormônios e nanotecnologia em vez de vitaminas e ferro.

Tomislav empurra sua mão dentro dela novamente, procurando cegamente pelo nó conector no que resta de seu verdadeiro trato intestinal, uma polegada e meia do tecido mais absorvente do corpo para melhor captação química.

— Opa! Peguei seu rim! Brincadeira. Já está dentro.

—  Tudo pronto. — Dr. Arturo confirma.

— Então vamos. — Pearl diz, levantando-se em suas lâminas.

3. Forças Maiores do que Você

— Você teria que ser algum tipo de idiota. — Ela disse à mãe que era uma aposta entre os jovens, mas não era. Era ela, apenas ela, tentando correr contra o trem.

O trem venceu.

4. O Porquê de Você me Ter

O drone inseto voa diante do rosto de Pearl, a lente se aproximando de seus lábios para captar as palavras que ela murmura em Xhosa e transmiti-las na tela. — Ndincede nkosi undiphe amandla. (ajude-me, Senhor, me dê forças)

Ela se abaixa para segurar as pontas curvadas das pernas, para se alongar, sim, mas também para esconder a boca. Supostamente deveria ser privado, ela pensa. Mas isso é uma ideia que pertencia a outra garota: àquela de antes dos acordos de Tomislav e da voz do Dr. Arturo em sua cabeça passando os diagnósticos, antes do Amado, antes do trem, antes de tudo isso.

— É porque você é muito taciturna, gatinha. — Tomislav tenta confortá-la. — Você dá migalhas às pessoas e elas ficam com fome de mais. Se você apenas falasse mais. — Ele está mexendo na gravata enquanto Brian Corwood, o apresentador, se move pelo tapete inicial com seu microfone, falando com Oluchi Eze, que está mostrando sua cauda para as câmeras.

Pearl não sabe como falar mais. Ela esgotou as palavras e, as que o Dr. Arturo quer que ela diga, fazem com que ela se sinta mastigando batatas cruas. Ela precisa pronunciar as sílabas. Ela passa a língua sobre os dentes para se livrar da sensação de que alguém instalou um circuito atrás de seus incisivos. São os novos medicamentos na hotbed, diz Tomislav. Ela tem que se acostumar, como os drones, que voam inesperadamente para perto dela. Eles são assustadores – câmeras conectadas a gafanhotos, com cérebros suficientes para responder aos comandos. Insetos são energia barata.

Em algum lugar, numa sala de controle, o Dr. Arturo observa seu recuo dos drones e fala palavras tranquilizadoras em sua cabeça: — O que você acha, Pearl? Mais sofisticados do que alguns atletas que conhecemos. — Ela olha para Charlotte Grange, que também está esperando para ser entrevistada. A grande garota loira treme e se agita, cerrando a mandíbula, seu exoesqueleto rangendo em antecipação. Os amortecedores neurais mal conseguem segurá-la.

A multidão ruge de impaciência, dezenas de milhares de pessoas atrás de uma curva de vidro de segurança reforçado nas arquibancadas bem acima da ação. Os telhados também estão lotados e há crianças pulando nos andaimes de um prédio antigo com vista para a pista.

As pessoas de terno, aquelas que o Dr. Arturo e Tomislav querem conhecer, assistem de quartos de hotel com ar-condicionado a cinco quilômetros de distância. Empresas médicas e farmacêuticas procurando as últimas inovações em um lugar onde tudo é permitido: drogas, próteses, robótica, nanotecnologia. É para isso que as pessoas vêm. Elas assistem aos milhões no canal proprietário. O drama. Como assistir à Fórmula 1 pelos acidentes de carro.

            — Todas essas pessoas, gatinha, — diz Tomislav. — Elas não se importam se você vencer. Elas estão apenas esperando você explodir. Mas você sabe  porque está aqui.

            — Para correr.

            — Essa é minha garota.

— Respire devagar. — Avisa o Dr. Arturo. — Você está superestimulada.

O drone inseto responde a uma mão invisível na sala de controle e gira ao redor dela, captando todos os ângulos. Brian Corwood se aproxima dela, o microfone estendido como um aperto de mão e câmeras aladas zumbindo atrás de seu ombro. Ela se mantém muito ereta. Ela sabe que sua mãe e o Amado estão assistindo em casa. Ela quer deixar Gugulethu orgulhosa.

— Ndincede nkosi. (Ajude-me, Senhor) — Ela murmura as palavras e as vê aparecerem nas grandes telas em legendas abaixo de seu rosto. Eles já trabalham no intuito de  traduzi-las. Não é difícil descobrir que ela está falando Xhosa.

— Pearl Nit-seeko. — O apresentador diz. — A garota milagrosa da Cidade do Cabo. Aleijada quando tinha catorze anos e aqui está ela, dois anos depois, nos +Games. Um sonho realizado!

Pearl contou a história tantas vezes que não consegue lembrar quais partes são inventadas ou enfeitadas. Uma vez, ela disse a um jornalista que viu seu pai ser morto na TV durante as greves ilegais nas minas em Polokwane (cidade da África do Sul) e como ela cobriu os ouvidos para não ter que ouvir o pa-pa-pa-pa-pa dos tiros enquanto as pessoas caíam na poeira. Mas agora ela tem que se manter fiel a isso. Tragédia faz uma história melhor do que a realidade de um bêbado de meia-idade inútil que deixou sua mãe para viver com a filha de um dono de bar em Nyanga (cidade em Zimbabwe) para não ter que pagar a conta do bar. Quando Pearl começou a ficar famosa, seu pai fez um escândalo nos tabloides locais até Tomislav pagar para ele ir embora. Você pode comprar sua própria verdade.

— Você pode nos contar sobre sua tecnologia, Pearl? — Brian Corwood diz, como se isso fosse um show sobre estrelas de cinema e vestidos brilhantes.

Ela responde no piloto automático. Os órgãos removíveis, o banho de nanotecnologia em seu sangue que melhora a absorção de oxigênio. Conectividade neural que abre os receptores para os hormônios e drogas despachados pelo biodistribuidor. Tomislav a treinou nas especificações técnicas dignas de notícia, os detalhes que fazem os investidores ficarem atentos.

— Eu não posso mostrar. — ela se desculpa, levantando a camisa timidamente para deixar as câmeras aproximarem da cicatriz. — Não é um ambiente estéril.

— Então, aí dentro é oco? — Corwood finge bater em sua barriga.

— Malha de grafeno de qualidade cirúrgica reforçada. — Ela tamborila levemente os dedos sobre a pele, como frequentemente ensaiado. Parece espontâneo e mostra seu abdômen sarado.

Ela ouve a voz do Dr. Arturo em sua cabeça. — Coloque a camisa para baixo agora. — Ele instrui. Ela se cobre. A estrela não quer deixar os espectadores verem muito. Como com sexo. Ou pelo menos é o que lhe disseram. Ela nunca terá filhos.

— Essa é a sua arma secreta? — Corwood diz, provocando, porque ninguém nunca revela as especificações exatas, não até terem um comprador.

— Não. — ela diz. — Mas eu tenho uma.

— O que é, então? — Corwood pergunta, animado.

            — Deus. — Ela diz e encara desafiadoramente as câmeras insetos que se aproximam para um close-up.

5. Coisas Que Você Não Pode Esconder

Os cotos de suas pernas estão envoltos em ataduras novas, mas as feridas ainda cheiram mal, como algo preso no ralo. Sua mãe quer encharcar as ataduras com perfume.

— Eu não quero! Me deixa em paz! — Pearl bate na garrafinha nas mãos de sua mãe que cai no chão com um estrondo. Sua mãe tenta agarrá-la. A garota cai da cama com um grito. Ela se arrasta com os cotovelos, chorando. Seu tio Tshepelo a ergue pelas axilas, como se fosse um saco de farinha de sorgo, e a coloca na mesa da cozinha.

            — Basta, Pearl. — Ele diz, seu tio mais novo e bonito. Quando era pequena, ela dizia à mãe que iria se casar com ele.

— Eu te odeio! — ela grita e tenta chutá-lo com os cotos, mas ele se desvia e vai até a chaleira enquanto sua mãe fica na porta, com o rosto nas mãos.

Pearl não voltou à escola desde o que aconteceu. Ela se vira para a parede quando seus amigos vêm visitá-la, recusando-se a falar com eles. Durante o dia, ela assiste a novelas e infomerciais, deita na cama de sua mãe, encara o céu e ouve o barulho do dia a dia: o ciclo do trânsito, crianças indo para a escola, cães latindo, o chamado para a oração vibrando nos alto-falantes decadentes da mesquita, o trânsito novamente e homens bêbados brigando no bar. Talvez um deles seja seu pai. Ele não a visitou desde o acidente.

Tshepelo prepara chá doce com leite para ela e sua mãe, se senta e fala bobagens, realmente, sobre seu dia na fábrica, preparando lotes de patês que ele diz serem como manteiga saborizada para pessoas ricas, e como ela deveria ver a estúpida touca azul de plástico que ele tem que usar para cobrir o cabelo em caso de contaminação. Ele fala e fala até ela se acalmar.

Finalmente ela concorda em ir à igreja – um serviço especial em Khayelitsha Site B (um município da África do Sul). Ela veste seu vestido de lã, cinza como o céu de inverno da Cidade do Cabo, e meias verdes, que ficam horrivelmente soltas na junção onde deveriam estar suas pernas.

A chuva pontilha suas roupas e encharca o chapéu de sua mãe, fazendo-o cair enquanto ela anda rapidamente atrás de Tshepelo, que carrega Pearl nos braços como um cachorro ferido. Ela odeia o jeito como as pessoas desviam os olhos.

A igreja não é mais do que uma tenda em um estacionamento, embora as pessoas cantem como se estivessem em uma catedral luxuosa na Inglaterra, como na TV. Pearl se senta rigidamente no final do banco entre seu tio e sua mãe, olhando fixamente para as crianças pequenas que correm para espiar. — Vaya. — Ela sussurra para eles. — O que vocês estão olhando? Vão embora.

Na metade do culto, dois dos ministros trazem a cadeira de rodas nova como se fosse um prêmio em um programa de TV, adornada com uma grande fita roxa. Eles a carregam escada abaixo nos ombros e a colocam na frente dela. Ela olha para baixo e murmura algo. — Nkosi.

Eles enfiam os dedos em suas axilas, essas mãos de estranhos nela, e a carregam até a cadeira. Quando a colocam, ela se sente presa. Ela geme e balança a cabeça.

— Ela está tão agradecida. — Sua mãe diz e a pressiona para baixo com uma mão no ombro. Aleluia, todos dizem. Aleluia. O coro começa a cantar e Pearl deseja que Deus a tivesse deixado morrer.

6. Calor

O cérebro de Pearl está microssegundos atrás de seu corpo. O estouro do tiro de partida é registrado como um som depois que ela já está correndo.

Ela está ciente dos outros corredores como formas quentes e tensas na periferia. Tomislav a fez estudar o modo como eles correm. Charlotte Grange, grunhindo e galopando, usando os braços do exoesqueleto para cavar no chão, como um macaco; Anna Murad com sua robótica conectada aos nervos; Oluchi Eze com sua cauda esculpida e ossos delicados, como um pássaro dinossauro. E na pista cinco, mais longe dela, Siska Rachman, com o rosto perfeitamente calmo e vazio, os olhos fixos na linha de chegada, a dois quilômetros de distância. Uma garota morta controlada remotamente por um tetraplégico em uma cama de hospital. Esse é o problema com a famosa Siska Rachman. Ela vence muito, mas a rede sempre tem atraso.

Você tem que habitar seu corpo. Você precisa estar nele. Não apenas porque as regras dizem isso, mas porque senão você não poderá senti-lo. O impacto do pé no chão, o vento na pele, o suor escorrendo pelas laterais. Nenhum biofeedback fará a diferença.

— Controle o ritmo. — Dr. Arturo diz em sua cabeça. — Vou te dar um impulso de glicose quando você atingir oitocentos metros.

Pearl se sintoniza com a respiração rítmica e estica as pernas a cada passo, ciente de tudo: a textura da pista, a imensidão do céu, o cheiro de suor, poeira e óleo. Uma sensação floresce em seu peito – um calor feroz, um brilho dourado, e ela sente o ímpeto do amor Dele e sabe que Deus está com ela.

Ela cruza em terceiro, pescoço a pescoço com Siska Rachman e milissegundos atrás de Charlotte Grange, que se joga na linha de chegada com um som de rasgo molhado. O exoesqueleto cai em uma confusão de garota e metal, forçando Rachman a desviar.

— Uma bruta. — Dr. Arturo sussurra em seu ouvido. — Não como você, Pearl.

7. O Amado

O carro chegou para buscá-los, Pearl, sua mãe e seu tio. Um BMW preto brilhante com calotas que transformam a luz em lanças. As pessoas saíram de suas casas para ver.

Ela está vestindo seu vestido preto, mas está um calor escaldante, e o suor escorre pela nuca e faz seu colarinho coçar.

— Não coce. — disse sua mãe, segurando suas mãos.

Illustration for TAAL, Omenana speculative fiction magazine
AI art created with MidJourney

O carro corta entre os barracos de lata e as casas do programa do governo, sob os olhares curiosos, passando pela rodovia em direção às terras vinícolas, passando pela universidade e pelas casas padronizadas dos ricos, além do campo de golfe onde carrinhos passam entre os aspersores, pelas colinas com vinhedos e bandeiras que atraem os turistas. Depois, segue por uma estrada lateral e através de um grande portão preto que se abre para uma entrada ladeada por cicas espinhosas.

Eles saem, atordoados pelo calor e por outras coisas – o tamanho da casa, a madeira e o vidro flutuando no topo da colina. Seu tio luta para abrir a cadeira de rodas que o pessoal do Khayelitsha Site B comprou para ela, até que o motorista dá a volta e diz, — Me deixe ajudá-lo com isso, senhor. — Ele empurra com força o assento que se encaixa no lugar. Ele os acompanha até um hall de entrada fresco com pisos de madeira e esculturas de metal de guepardos guardando a escadaria. Uma mulher vestida com um vestido vermelho e branco e um lenço na cabeça, sorri e os conduz até a sala onde três homens estão esperando: um avô com dois homens brancos flanqueando-o como os felinos de pedra ao lado da escada. Um magro, um cabeludo.

— O Amado. — Diz sua mãe, desviando os olhos. Seu tio abaixa a cabeça e levanta as mãos em sinal de respeito.

            O medo deles deixa Pearl com raiva.

O avô acena para que eles se aproximem. — Venham, venham. — A calça de seu terno azul-escuro tem vincos dobrados tão afiados quanto papel, e seus sapatos são pretos como carvão.

— Então, esta é Pearl Nitseko. — diz o Amado, testando o peso do nome dela. — Ouvi falar de você.

O homem branco esquelético a encara. Ela descobrirá mais tarde, que ele é o advogado que faz ela e sua mãe assinarem papéis e mais papéis. O outro, de ombros largos, mexe nas algemas, puxando-as sobre seus pulsos peludos, mas ele está observando-a mais intensamente que todos.

— O quê? — Ela exige. — O que você ouviu?

Sua mãe ofega e dá um tapa na cabeça dela.

O Amado sorri. — Que você tem fogo dentro de si.

8. Tautologias Temerosas

Tomislav apressa Pearl a passar pelos manifestantes religiosos do lado de fora do estádio. Credos e seitas se uniram em indignação moral, cantando, — Anti-natural! Anti-divino! Anti-sagrado! — Eles cantam as palavras em inglês em vez de urdu para o benefício dos drones. — Vamos lá! — Tomislav passa por ela, levando-a em direção a um carro de transporte que os levará para o jantar. — Esses malucos não têm coisas maiores com que se preocupar? O governo tirânico deles? As crianças famintas? — Pearl pula no transporte e ele se lança atrás dela. — Extremismo eu posso lidar. — Ele bate a porta. — Mas tautologia? Isso é imperdoável. — Pearl fecha o zíper da sua roupa de corrida.

A multidão avança em direção ao transporte, batendo nas janelas com as palmas das mãos. — Monstro! — uma mulher grita em inglês. — Deus te odeia.

— O que é tautologia? — ela pergunta.

— Repetição desnecessária.

— Não é isso que o medo sempre é?

— Eu esqueço que você é rápida e inteligente. Sim. Eles que se danem, — diz Tomislav. O transporte começa a se mover e ele bate palmas.

— Você foi bem lá fora.

— Você conseguiu uma reunião?

— Nós conseguimos uma reunião, gatinha. Eu sei que você pensa que sua grande competição é Siska, mas é Charlotte. Ela continua avançando cada vez mais.

— Ela se machucou.

— Rompeu um tendão, dizem as notícias, mas ela ainda vai correr amanhã.

O Dr. Arturo, sempre ouvindo, intervém. — Eles têm carne de reposição no laboratório, podem produzir um tendão. Mas não é uma boa estratégia a longo prazo. Isso é uma guerra, não uma batalha.

— Eu achei que não podíamos lutar. — diz Pearl.

— Você está falando com o doutor? Diga a ele para guardar sua conversa para os investidores.

— Tomislav diz… — ela começa.

— Eu o ouvi. — Diz Dr. Arturo.

Pearl olha para os manifestantes. Um dos cartazes escritos à mão fica em sua mente. — Eu fui feita de forma temerosa e maravilhosa. — Diz.

9. Ela Cresceu

Pearl observa os ônibus chegarem de sua cama no andar de cima na sede da Igreja Pentecostal do Amado. Um quarto de hóspedes adaptado para os propósitos, com uma enfermeira sentada do lado de fora e máquinas que sibilam e bipam. As drogas a deixam tonta. Ela tem impressões, mas não memórias. O barulho da sirene da ambulância e a sensação de ser importante. Visitantes. Homens de shorts de golfe e um militar com bochechas gordas. Relógios de ouro e estrelas no uniforme, para combinar com a estrela dourada na torre que ela pode ver da janela e as colunas gordas e cônicas como balas na entrada.

— Você está pronta? — diz o Dr. Arturo. Ele veio da Venezuela especialmente para ela. Ele tem mãos gentis e olhos bondosos, ela pensa, embora ele seja o único que tirou tudo dela. Excesso de bagagem, ele diz. Dói onde foi removido, seus órgãos femininos, seu estômago e suas entranhas.

Ele diz que procuraram alguém como ela por muito tempo, ele e Tomislav. Eles tinham desistido de encontrá-la. E agora! Agora veja onde estão. Ela é muito sortuda. Ela sabe disso porque todos continuam dizendo a ela.

Dr. Arturo a leva até o elevador onde Tomislav está esperando.

O cirurgião é muito modesto. Ele não gosta de aparecer na câmera. — Não se preocupe, eu estarei com você. — Ele diz e dá um tapinha em seu rosto perto de sua orelha.

— Tudo é sobre você, gatinha. — Tomislav diz, empurrando-a para fora em um enorme corredor ecoante sob um céu pintado com anjos e o Amado, em vestes roxas flutuantes, sorrindo para as pessoas que entram pelas portas, as mulheres vestidas de vermelho e branco e os homens de blêizeres azuis e camisas brancas. Desta vez, ela não se importa que olhem para ela.

Eles abrem caminho para a cadeira de rodas, passando pelas portas duplas, pelos porteiros, para uma enorme sala com um teto enrugado e brilhante como uma concha do mar, varandas prateadas e carpetes vermelhos. Ela se sente como uma estrela de cinema, o cobertor vermelho sobre seus joelhos é seu vestido de festa.

De algum lugar profundo na igreja, mulheres levantam suas vozes em ululação e todos os pelos do corpo de Pearl se arrepiam como se ela fosse um gato. Tomislav vira a cadeira de rodas e a estaciona ao lado de um enorme trono dourado com folhas e flores esculpidas e uma coroa de espinhos. Ele dá um tapinha em seu ombro e a deixa ali, encarando a multidão, milhares de pessoas no auditório, todos olhando para ela. — Sorria, Pearl. — Diz o Dr. Arturo, sua voz suave dentro de sua cabeça, e ela tenta, ela realmente tenta.

Um grupo de mulheres sai dos bastidores em direção ao palco, balançando com tigelas de madeira nos quadris, suas mãos mergulham nas tigelas como cisnes bicando algo, jogando pétalas de rosa à sua frente. A multidão se junta a ululação, e isso reverbera pela igreja. Halalala.

O Amado sobe ao palco. Pearl tem que cobrir os ouvidos com o barulho que o saúda. Mulheres estão chorando nos corredores. Homens também, chorando de felicidade ao vê-lo.

O Amado estende as mãos para acalmá-los. — Silêncio, por favor, irmãos e irmãs da Pentecostal. — Ele diz. — A paz esteja com vocês.

— E com você também. — A multidão responde em uníssono. Ele coloca as mãos nas costas da cadeira de rodas.

— Hoje, nos reunimos para testemunhar um milagre. Minha filha, você se levantará e caminhará?

E Pearl o faz.

10. Chamado para a Oração

O restaurante é chique, um bufê de comida paquistanesa, korma e tikka e kebabs e bandejas de prata com doces pegajosos. Os atletas têm que posar para fotos e dar mais entrevistas para Bryan Corwood e outros. A jornalista com mechas roxas no cabelo e um anel de metal no lábio pergunta a ela: — Você não tem medo de morrer lá fora? — Antes que Tomislav intervenha.

— Qual é? Que tipo de pergunta é essa? — Ele diz.

Mas os atletas realmente não podem comer, e há um ônibus que os leva para casa cedo para que estejam revigorados no dia seguinte, enquanto os promotores se afastam, um por um, em carros pretos elegantes que os levam para outras partes da cidade, parecendo tensos.

— Não se preocupe, gatinha. — Tomislav sorri, mostrando todos os dentes, e dá um tapinha na mão dela.

De volta ao seu quarto, Pearl encontra um tapete de oração que pode estar alinhado em direção à Meca. Ela telefona para a recepção para perguntar. Ela se prostra no quadrado de carpete, leste, oeste, para ver se é diferente, se seu Deus ficará irritado.

Ela entra na Internet para verificar as notícias e as apostas. Suas chances melhoraram. Há muita especulação sobre a lesão de Grange, e se Rachman será desclassificada. Há fotos de Oluchi Eze posando nua para uma revista masculina, sua cauda enrolada sobre suas partes.

Pearl clica em outra coisa e observa a si mesma no replay, seus golpes, sua postura, a alegria em seu rosto. Ela espera que o Dr. Arturo comente, mas o implante coclear apenas chia com uma estática leve.

— Mama? Você viu a corrida? — A conexão de vídeo com Gugulethu trava e treme. Sua mãe está com a câmera do telefone apontada para o alto, então ela só pode ver os olhos e o topo da cabeça de sua mãe.

— Exibiram no centro comunitário. — Diz sua mãe. — Todos ficaram muito animados.

— Você deveria ter ouvido eles torcendo por você, Pearl. — Diz seu tio, inclinando-se sobre o ombro de sua mãe, puxando a câmera para baixo para que fiquem enquadrados.

Sua mãe franze a testa. — Não sei se você deveria usar essa blusa, não é realmente a sua cor.

— É do meu patrocinador, Mama.

— Estamos orando para que você se saia bem. Todos estão orando por você.

11. Deserto

Pearl tem um sonho em que ela, Tomislav e Jesus estão de pé na varanda do prédio principal do Instituto Parsi de Karachi olhando para as favelas. A fina areia dourada se ergue como água entre os barracos de concreto, entrando pelas janelas, engolindo os telhados, impulsionada pelo vento.

— Você notou que há apenas um conjunto de pegadas, Pearl? — Jesus pergunta. A areia sobe, engolindo as casas, correndo para preencher as lacunas, a natureza assumindo o controle. — Você sabe por que isso acontece?

— É porque você levou as malditas pernas dela, Senhor? — Tomislav diz.

Pearl não consegue ver pegadas no deserto. A areia se move rápido demais.

12. Flores Raras

Bem acordada. Meia-noite e meia. Ela está deitada na cama olhando para o teto. Dr. Arturo deveria aumentar sua dopamina e melatonina, mas ele está ocupado. A reunião correu bem, então. A mensagem de Tomislav no telefone confirma isso. — Boas notícias! Conto de manhã. Durma bem, gatinha, você precisa.

Ela revira o pensamento na cabeça e tenta entender como se sente. Feliz. Isso significa que ela poderá comprar uma casa para sua mãe e pagar para que seus primos estudem numa escola particular e fundar a Academia de Esportes Pearl Nitseko para Meninas em Gugulethu. Ela nunca mais terá que correr. A menos que queira.

A ideia do dinheiro pesa em seu peito.

Ela balança os cotos para o lado da cama e prende as lâminas. Ela precisa sair, pegar um pouco de ar.

Ela percorre os corredores do velho prédio. Há uma festa no campo de críquete lá fora, com barracas de cerveja e o burburinho de pessoas que não precisam correr amanhã. Ela se desvia, voltando para o desgastado prédio colonial do IPK, na esperança de chegar à pista de corrida e correr para extravasar.

A pista está cercada e trancada, mas o segurança está distraído com seu telefone, preso em outro mundo de blocos coloridos deslizantes. Ela se agarra às sombras do arco, passando por ele e entrando mais fundo no prédio, seguindo para onde as portas a levarem.

Ela sai em um salão ao redor de um poço de azulejos afundados. Uma antiga piscina. Siska Rachman está sentada na beirada, balançando os pés no fantasma da água, seus cabelos escuros ao redor de seu rosto perfeitamente vazio. Pearl se abaixa ao lado dela. Ela não consegue resistir. Ela dá um peteleco na testa de Rachman.

— Heita. Alguém aí dentro?

O rosto pisca e, de repente, os olhos estão vivos e furiosos.

Ela agarra o pulso de Pearl. — Claro que estou. — Ela estala.

— Desculpe, eu não pensei…

Siska já perdeu o interesse. Ela solta o pulso de Pearl e afasta o cabelo do rosto. — Então, você também não consegue dormir? Me pergunto o porquê.

— Muito nervosa. — Diz Pearl. Ela tenta ser provocadora, como Tomislav seria. — Eu tenho uma competição difícil.

            — Talvez não. — Siska franze a testa. — Eles vão me desqualificar, porra.

Pearl acena com a cabeça. Não quer se desculpar novamente. Ela se sente tímida perto de Siska, a garota mais velha com suas sobrancelhas espessas e nariz afilado. Os seis anos de diferença entre elas parecem um abismo intransponível. — Eles acham que Charlotte é humana? — Siska explode. — Charlotte é um grande animal burro. Como ela é mais humana do que eu?

— Vocês são duas pessoas. — Pearl tenta explicar.

— Você era meia pessoa anteriormente. Isso conta contra você?

            — Não.

— Você sabe o que isso costumava ser? — Siska bate nos azulejos azuis.

— Uma piscina?

— Eles não conseguiam fazer a manutenção. Essas coisas são caras de manter. — Siska olha para Pearl. Na luz que entra pelo átrio de vidro, cada cílio se destaca em forte contraste contra o brilho dos seus olhos. — Eles drenaram toda a água, mas havia uma criança que estava… danificada, no cérebro, e a única coisa que ele podia fazer era cultivar orquídeas. Então, foi isso que ele fez. Ele transformou este lugar em um jardim e as vendeu daqui por anos, até ficar velho. Agora acabou.

— Como você sabe disso?

— O segurança me contou. Nós fumamos cigarros juntos. Ele queria que eu fizesse um boquete nele.

— Oh. — Pearl recua.

— Ei, você está usando lentes?

Ela sabe o que significa. As lentes de transmissão. — Não. Eu não faria isso.

— Eles vão te usar e te esgotar, Pearl Nit-seeko. Então você vai implorar para fazer um boquete em algum segurança gordo, só por trocados.

— É Ni-tse-koh.

— Não importa. Você diz tumate, eu digo ni-tse-koh. — Mas Siska acerta desta vez. — Você acha que é tudo sobre você. Sua segunda chance e tudo o que você tem que fazer é correr até o coração parar. Mas é um show de talentos, e eles não se importam com a corrida. Você já conseguiu um contrato?

— Meu promotor e meu médico tiveram uma reunião.

— Isso é alguma coisa. Disseram com quem?

— Não tenho certeza.

— Farmacêutica ou médica?

            — Eles não me disseram ainda.

— Ou militar. Militar é bom. Ouvi dizer que os britânicos estão fora este ano. É o que você quer. Quero dizer, quem sabe o que vão fazer com isso, mas por que você se importa, ratinha de laboratório? Contanto que você receba seu pagamento.

— Você está bêbada?

— Meu corpo está bêbado. É que eu sou uma menina má. Por que você se importa? Estou fora, irmã. E você está dentro, com uma chance. Não seria incrível se você vencesse? Garotinha da África.

— Não é um país.

— Que pena, sinto muito por você.

— Deus me trouxe aqui.

— Oh, esse cara? Ele só traz problemas. E Ele não existe.

— Você não deveria dizer isso.

— Como você sabe?

— Eu posso senti-Lo.

— Você ainda pode sentir suas pernas?

— Às vezes. Pearl admite.

Siska se inclina para frente e a beija. — Você sentiu alguma coisa?

— Não. — Ela responde, limpando a boca. Mas isso não é verdade. Ela sentiu o hálito de Siska, ardendo com álcool, e a maciez dos lábios dela e sua língua brincando, surpreendentemente quente para uma garota morta.

— Pois é. — Siska suspira. — Eu também não. Você tem um cigarro?

13. Espaços Vazios

A pista cinco está vazia e o estádio está fervilhando com a notícia.

— Não pensei que eles realmente a baniriam. — Tomislav diz. Ela percebe que ele está de ressaca. Ele fede a suor e álcool e há um vinco na testa logo acima do nariz que ele continua esfregando. — Você quer ouvir sobre a reunião? Foi grande. Maior do que esperávamos. Se isso der certo, Gatinha…

— Quero me concentrar na corrida. — Ela está prestes a chorar, mas não sabe o porquê.

— Ok. Você deveria tentar vencer. De verdade.

A arma dispara. Eles correm pela pista. Cada passo parece mais difícil hoje. Ela não dormiu o suficiente.

Ela vê algo acontecer pelo canto do olho. A cauda de Oluchi atinge Charlotte, talvez de propósito.

— Merda. — Grange diz e tropeça em seu exoesqueleto. Tudo desaba sobre Pearl, metal quente e pele, uma confusão de membros e fogo ao seu lado.

— Levante-se. — Dr. Arturo grita em sua cabeça. Ela nunca o ouviu tão perturbado antes.

— Ai. — Ela consegue dizer. Ao lado dela, Charlotte está se levantando, um retalho solto de músculo pendurado na perna, onde tentaram fixá-lo esta manhã. A moça enorme toca o local e sibila de dor, mas seus olhos já estão focados na linha de chegada, em Oluchi avançando, sua cauda balançando, Anna Murad se esforçando atrás dela.

— Levante-se. — Dr. Arturo diz. — Você tem que se levantar. Estou ativando adrenalina. Bloqueadores de dor.

Pearl se senta. É difícil respirar. Sua regata está molhada. Um pequeno pedaço de osso cinza se projeta através da pele sob seu seio. Charlotte está mancando em seu exoesqueleto, arrastando a perna, engrenagens rangendo.

— Isso é o que eles querem ver. — Dr. Arturo insiste. — Você precisa provar a eles que não é a hidráulica que te leva adiante.

— Não é. — ela ofega. O som é úmido. É como respirar por um snorkel no banho quando há água presa no sifão. Os drones zumbem ao redor dela. Ela pode ver seu rosto grande na tela. Sua mãe está assistindo em casa, toda a congregação.

— Então prove. Por que você está aqui?

Ela começa a andar, depois a correr, segurando a costela para evitar os solavancos. Cada passo a rasga por dentro. Pearl pode sentir as coisas deslizando por dentro. Sua integridade estrutural foi comprometida, ela pensa. A malha abdominal se rompeu e onde costumava estar seu estômago, há um buraco negro que está puxando tudo para baixo. Seu coração está deslizando.

Ndincede nkosi, ela pensa. Por favor, Jesus, me ajude.

            Ndincede nkosi undiphe amandla. Por favor, Deus, me dê força.

Yiba nam kolu gqatso. Esteja comigo nesta corrida.

Ela pode senti-Lo. O brilho dourado que começa em seu peito ou, se for sincera consigo mesma, mais abaixo. No fundo do seu estômago.

Ela contrai o abdômen e pressiona a mão contra o esterno para impedir que o coração deslize para dentro de suas entranhas – onde costumavam estar suas entranhas, onde o biodistribuidor está.

Deus está comigo, ela pensa. O que importa é que você sinta isso.

Pearl Nitseko corre.


Lauren Beukes

Lauren Beukes é uma autora sul-africana premiada e internacionalmente conhecida, autora de The The Shining Girls, Zoo City e Afterland, entre outras obras. Seus romances foram publicados em outros 24 países e foram adaptados para o cinema e para a televisão. Ela também é uma autora de HQs, roteirista, jornalista e produtora de documentários. O seu novo romance Bridge foi publicado em agosto de 2023.

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