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Entre Jacintos | Mandisi Nkomo

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Illustration for Into the Hyacinth, story in Omenana Magazine
AI art created with MidJourney

Tradução de “Into the Hyacinth” (Omenana, Issue 25, July 2023)

Traduzido por/Translated by:

Ana Júlia Arruda dos Santos

Yasmin Zago Batista

Piet olhou para o e-mail vazio que estava tentando digitar. Ele se levantou e se ocupou em consertar coisas que não precisavam ser consertadas. Trocou lâmpadas velhas que ainda estavam funcionando. Ele saiu e ligou todos os quatro carros. Ele os deixou funcionando individualmente por cinco minutos cada. Abriu os capôs, verificou o óleo e a água. Foi até o jardim e arrancou algumas ervas daninhas. Então limpou o filtro da bomba da piscina. Não havia folhas no filtro, mas ele o tirou do mesmo jeito. Tirou o inseto assustador da piscina. Desmontou cada segmento para verificar se não havia nada preso dentro. Não havia nada preso dentro. Então tomou uma cerveja Castle Lager.

Ligou no jogo de rugby, assistiu por dez minutos e depois voltou para o computador.

– Marelize – ele digitou para sua filha distante. – Como você sabe, sua mãe está morta, mas você não sabe realmente como. Tentamos manter isso em segredo, mas preciso lhe contar a verdade. Ela se afogou.

Depois que essa primeira frase difícil tinha saído, ele voltou a assistir ao jogo de rúgbi.

 #

– Então ja Marelize, – Piet continuou o e-mail. – Ela se afogou. Não sei como explicar exatamente. Ela ficou mais preocupada nos últimos anos. Tentei não te incomodar muito com isso. Talvez tenha sido depois que o Trump foi eleito. Não tenho muita certeza. Ela pareceu muito chateada com esse fato, entre outras coisas. Não fiquei muito incomodado com isso. Ele simplesmente me pareceu um cara franco e direto.

– De qualquer forma, ela se envolveu muito com o Arrebatamento depois disso, mas de uma forma muito blasfema. Quase agourenta. Ela se convenceu de que o fim do mundo estava chegando. Ao mesmo tempo, também começou a ficar obcecada com o jacinto-d’água. É uma planta. Ela disse que a mãe jacinto estava falando com ela da Represa Hartbeespoort. Chamando-a para se tornarem uma, e essa era a única maneira dos humanos sobreviverem ao apocalipse que se aproximava. O pastor ficou muito chateado com suas novas crenças, especialmente depois que ela parou de frequentar a igreja regularmente.

– Desde que você foi embora, a represa ficou cheia de jacintos. Não conseguem se livrar disso. Eles simplesmente voltam. Têm muitos especialistas da Universidade de Rhodes e tal para explicar como é difícil se livrar disso. Muitas sementes na represa ao longo dos anos. Coisas assim. A planta é aparentemente da Amazônia, pelo que li. Foi espalhada durante o colonialismo, dizem, mas eu não gosto muito dessa coisa de culpar o racismo e o colonialismo por tudo. É uma atitude preguiçosa. As pessoas devem assumir a responsabilidade por si mesmas e pelas situações.

– Então, ja. Sua mãe disse que ela está se transformando em jacinto. Foi quando começou a piorar. Vou ser homem e admitir que ignorei algumas coisas quando não deveria. Foi difícil acompanhar. Sou da velha guarda, sabe? Realmente não entendo esses tipos de coisas e problemas mentais. Sabe, como quando você começou a falar sobre essa palavra, “queer”, nessas siglas en al daai moerse, e identidade, e outras coisas. Realmente não entendo essas coisas. Essas coisas mentais. Só pensei em orar por você.

Piet parou de digitar quando a exaustão chegou. Seus braços estavam pesados e seus ombros queimavam com o peso. Era tarde da noite, e o corte de energia estava chegando. Normalmente ele não estaria acordado para o horário das 3 da manhã, mas depois da morte de Marykie, ele não conseguia dormir de verdade.

#

Outra semana passou em questão de minutos. O tempo havia perdido a forma. Piet se sentia fatigado com o que havia escrito, mas estava tão desacorçoado pela verdade. A verdade que ele não havia contado à filha. Ela já estava distante, afinal, então por que jogar nela o peso da loucura que ele havia testemunhado?

Ele desceu até a cozinha e serviu-se de klippies e coca. Talvez o conhaque Klipdrift o ajudasse a dormir, ele disse a si mesmo, em muitas noites. Ele sentou-se na sala de estar vazia e agora cada vez mais oca. Parecia que as paredes estavam constantemente se fechando, e o silêncio estava berrando para ele em uma alta frequência ininterrupta de ruído branco. Ele ligou o rugby. Os Bulls contra os Sharks. Ele já tinha assistido a essa partida? Isso importava?

Outra semana se passou, dessa vez pareceu em questão de segundos. Seus amigos estavam cobrindo-o na concessionária de carros. Piet tinha tirado uma folga, mas o tempo parecia se estender e se estender sem fim, e ele estava sempre cansado, e a energia que ele buscava para voltar ao trabalho parecia estar fugindo dele, constantemente apenas alguns passos à frente. Ele nunca conseguia alcançá-lo.

Ele precisava desabafar. Ele precisava contar a Marelize. Ele reuniu forças para juntar mais algumas palavras.

#

– Então ja, você sabe. Estou bem e tudo mais. Não tão mal. Não se preocupe. Você não precisa se preocupar comigo. Entendo que eu te frustro. Ou qual era a palavra que vocês, laaities, usam? Gatilho? Gatilhos…

– Você não precisa voltar. Estou bem. Você disse que tinha suas razões para deixar o país. Está tudo bem. Eu posso entender querer viver sem crimes constantes e cortes de energia. É a coisa humana a se fazer.

– Mas como estava tentando explicar. Sua mãe. Não foi tão simples como ela morreu. Suicídio é uma coisa muito ruim. Espero que você saiba disso. É um pecado. O pastor ficou muito decepcionado. Decidimos não contar a ninguém de fora da família. Não que você seja de fora da família, mas, ag, você sabe o que quero dizer. Foi constrangedor, então não queríamos que os outros soubessem. Quero dizer, sua mãe era um modelo na igreja. Não podíamos decepcionar as crianças daquele jeito.

– De qualquer forma, onde eu estava? Ela dizia que sua pele estava ficando verde e que quando ela se olhava no espelho, seus olhos eram flores roxas. Seu cabelo era flores. Ela ficava dizendo que tinha flores na cabeça.

– Foi na igreja que a vimos se machucar pela primeira vez. Eu nem sabia que ela tinha uma faca com ela. O pastor estava dando seu sermão e do nada ela simplesmente se levantou e caminhou até o púlpito. Todos estavam muito confusos. Ela então começou a tirar a roupa. A roupa todas, quero dizer. Estávamos todos congelados em choque. Algumas pessoas estavam gritando. Ela cortou seus antebraços e disse a todos para olharem para seu sangue verde. Então ela começou a pregar freneticamente sobre o Arrebatamento, que a eleição de Donald Trump era o sinal do fim dos tempos. Logo uma praga viria, e a terra não nos sustentaria mais, e tínhamos que nos tornar um com o jacinto se quiséssemos permanecer vivos. Ela estava frenética, acenando com as mãos e espirrando sangue por todo lado até cair inconsciente.

– Aconteceu de novo uma semana ou mais depois. Felizmente não na igreja. Teria sido muito embaraçoso acontecer lá de novo. Sua mãe disse que queria se tornar fertilizante. Eu ri primeiro, então ela continuou falando sobre como o jacinto pode ser reutilizado como fertilizante, então se todos nós nos tornarmos um com a mãe jacinto, sobreviveremos ao fim dos tempos sendo reabsorvidos pela terra. Foi uma coisa bem ruim de se ouvir.

– Era o que os especialistas diziam. As pessoas vinham com uma caminhonete pequena e pegavam o jacinto em pedaços. Um dia, sua mãe saiu correndo e gritou com os trabalhadores para tirá-la de mim. Ela disse que eu era um marido horrível, que eu tinha arruinado você com minhas palhaçadas, e eu não acreditava que ela era um jacinto. Eles riram sem jeito para manter a paz, até que ela levantou seu vestido floral de verão e cortou um pedaço de sua coxa. Desta vez foi com uma tesoura.

– Ela levantou a fatia para mostrar que era verde como uma planta. Alguns deles pularam e começaram a se afastar. Logo depois eu a controlei. Essa foi a segunda vez que fomos ao médico depois que ela se automutilou. O médico fez muitas perguntas e recomendou um psiquiatra. Eu pensei em você, ag, mas não é assim que você resolve problemas. Mas então outro dia eu a encontrei no banheiro; ela tinha raspado a cabeça. Ela disse que estava podando as flores. Ela colocou tufos de cabelos em vasos pela casa. Ela me forçava a olhar para a linda cor roxa por horas. Eu só via cabelo, mas eu tentava o meu melhor. Bem, pior do que isso, ela começou a cortar o próprio couro cabeludo. Ela colocava pedaços nos vasos também.

– Finalmente, consultamos alguém, e ela disse que sua mãe tinha um caso grave de esquizofrenia. A sugestão foi interná-la até que pudessem estabilizá-la. Nem fodendo. Ninguém iria internar minha Marykie. Eu disse a eles para irem se danar. Na época, eu tinha certeza de que conseguiria lidar com isso.

– Você sabe que eu mantenho as coisas simples. Vou para o trabalho e volto. Vou à igreja. Assisto ao rugby. Este último time dos Boks está indo muito bem. Muito bem. O rugby é tão importante, sabia? Não gosto quando dizem que há racismo no rugby. Não há racismo no rugby. É um esporte, sabia? Não se vê política no esporte. Você consegue imaginar apresentadores esportivos saindo furiosos de um programa porque acham que há racismo? Muito pouco profissional. Duvido que esse tipo de coisa aconteça no Reino Unido. Eles provavelmente são mais sofisticados aí. Mas essa é a África do Sul para você. As pessoas sempre puxam a carta racial. Acho que é por isso que você foi embora, talvez.

A eletricidade foi cortada assim que Piet terminou a frase. Novamente, distraído e cansado, ele tinha esquecido de verificar o cronograma de corte de energia. Ele apenas ficou sentado lá no escuro, o que tinha se tornado cada vez mais confortável para ele. Ele se perguntou se o e-mail tinha sido salvo. Ele meio que esperava que não tivesse. Estava demorando mais para terminar do que ele pensava. Marelize era apenas uma criança, como ele poderia estar tendo dificuldades para escrever para ela? Ele sabia que não deveria ligar. Ele sabia que ela não gostava disso. Como ele poderia ter esquecido de pegar gasolina para o gerador?

Os outros geradores zumbiam na escuridão. Ele se perguntou se Marelize e Marykie ainda estavam se falando. Mesmo antes de ela começar a sair em horários estranhos da noite para ficar perto da água, ele pensou ter ouvido Marykie tendo conversas sussurradas à noite.

#

A eletricidade só voltou na tarde seguinte. Por fim, ele cochilou vendo o rugby, que tinha salvo no celular. Acordou para fazer café, pois, de acordo com a programação, deveria ter energia. Chegou até a colocar água e sua mistura favorita de café moído na máquina. Ainda meio dormindo, apertou o botão de energia várias vezes, esperando a luz vermelha que nunca acendeu. Seus ouvidos ligaram, e ele ouviu o zumbido sinistro do gerador nas outras casas. Revirou os olhos e apertou um interruptor para ter certeza, pois sempre havia uma esperança lamentável de que talvez a energia estivesse ligada, mesmo quando se sabia que não estava. Depois, ele folheou as mensagens do grupo de WhatsApp do bairro irritado, descobrindo que a companhia de energia tinha que consertar isso ou aquilo, e não sabia quando a energia voltaria. Ele xingou, subiu as escadas e molhou o rosto antes de entrar na caminhonete e dirigir até o Mugg & Bean para tomar café da manhã. Eles tinham um gerador e internet, pelo menos.

Depois de tomar café e comer uma omelete, Piet deixou a Mugg & Bean e foi até o posto da Engen para comprar  um pouco de gasolina. Quando chegou em casa, ligou o gerador e, assim que o fez, a energia voltou. Ele foi até o computador e, um tanto decepcionantemente, o e-mail havia sido salvo. Ele teve que continuar.

Sentado em seu computador, ele sentiu seu joelho ruim. Ainda sensível depois de todos esses anos. A lesão que arruinou sua carreira de rugby na universidade. Era besteira. O joelho não havia o desacelerado em nada. Ele havia se apresentado naquela partida do jeito que sempre se apresentou. Era como seu pai havia dito. “Aquele kaffir entrou no time

por causa da ação afirmativa.” Piet não gostava da palavra kaffir. Eram os velhos costumes. Mas ele entendia o que seu pai queria dizer. Os negros que governavam o país estavam apenas contratando seus familiares. Mesmo em lugares que não deveriam ser políticos como esportes, eles tinham que trazer o assunto da raça sem motivo. Isso era verdade.

O joelho o lembrou da noite em que Marykie o levou à represa para ver a mãe jacinto. O frio fez seu joelho formigar, e formigava muito naquela noite por estar muito frio.

– Então, ja. Sua mãe me fez ir até a represa com ela uma noite. Estava muito frio naquela noite. Novamente, fiquei confuso, mas deixei que ela me convencesse a ir até a represa de qualquer maneira. Descemos em silêncio com uma lanterna mostrando o caminho. Estava assustadoramente quieto e quase não havia animais lá fora, o que era bem estranho. Chegamos à água e sua mãe ficou muito, muito animada.

– Você a vê? – Ela continuou gritando. – Olhe para sua majestade!

– Eu não conseguia ver nada além da escuridão e do reflexo da lua na água calma, mas sua mãe continuou.

– Olhe para aquela linda cor azul! É tão adorável! Oh, ela está me chamando para a água.

– Naquele momento, ela avançou para a água. Ela entrou direto. Roupas e tudo. Eu tive que correr e arrastá-la para fora eu mesmo. Ela estava histérica, e só quando voltamos para casa eu consegui acalmá-la. A água estava tão fria que meu joelho estava tinindo de dor.

A energia acabou, mas o computador continuou ligado, com o zumbido do gerador entrando em ação. Piet verificou o horário. Três da manhã novamente. A programação estava certa esta noite. Ele pensou várias vezes sobre aquela noite e, por fim, descobriu que não conseguia se conter. Ele se levantou do computador e encontrou a lanterna. Imediatamente após terminar de escrever, tudo parecia estranho. Ou familiar, como se a presença de Marykie estivesse na casa.

Ele saiu e começou seu caminho até a represa. Estava frio, se não mais frio do que naquela noite, e novamente, assustadoramente silencioso com a ausência de presença animal. Conforme se aproximava da água, ele pensou que podia ouvir vozes, mas quando chegou à água não havia ninguém lá. No entanto, ele ainda podia ouvir uma voz, e descobriu que era a voz de Marykie, chamando-o do silêncio da água.

Ele estava hesitante. Quase assustado a essa altura. Ele não podia realmente estar ouvindo a voz de Marykie, podia? Seria impossível.

Piet se arrastou para mais perto da água, e pensou que podia ver Marykie acima dela, pairando nua e coberta por uma névoa azul escura. Ela estava envolta nas folhas planas, mas semelhantes a dedos, do jacinto, e carregava um ramalhete de flores de jacinto roxas brilhantes, criando uma espécie de miragem cintilante pulsando na sua cabeça.

Ele estava tão perto da água agora, que podia sentir o frio vindo dela, atravessando as camadas de roupas que ele estava usando. O chão parecia pulsar abaixo dele, e ele sentiu a umidade penetrando em suas botas, através de suas meias, deixando seus pés dormentes, mas também doloridos. As longas folhas de jacinto em forma de dedos saíram deslizando da represa e se enrolaram em suas pernas, então ele estava se afogando.

Enquanto o pulmão dele se enchia de água e o frio machucava sua pele, ele podia ouvir Marykie falando.

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– Piet, meu amor, estou tão feliz que você se juntou a nós. Agora você entende que ela é real. Podemos nos tornar um, mas, oh, espere, você precisa terminar de escrever para Marelize. Ela precisa saber sobre a mãe jacinto também. Ela precisa se salvar do mundo moribundo. Estaremos juntos em breve.

Piet foi libertado do afogamento. Ele acordou na cama, congelando, encharcado de água e tossindo o excesso de líquido que havia se acumulado em seus pulmões. Enquanto vomitava a água, ele percebeu que o quarto inteiro estava molhado, e havia jacintos por toda parte. Lindas flores azuis e roxas adornavam seu chão e grudavam nas paredes e armários. Ele caiu de volta na cama exausto, incapaz de reunir forças e lutar para chegar até o banheiro e tirar as roupas molhadas que estavam fazendo sua pele arder. Finalmente ele conseguiu, e se secou com uma toalha. O pior do frio levou alguns minutos para sair dele. Então ele andou na ponta dos pés pelo chão frio e congelado de umidade e jacinto até o armário e puxou algo quente para vestir. O quarto estava muito frio. Ele não conseguiu lidar com isso então, saiu e foi para o antigo quarto de Marelize, ainda cheio de todas as suas coisas, e caiu na cama, cobrindo-se com cobertores e bichos de pelúcia até atingir uma temperatura suportável.

Enquanto ele estava deitado ali, o gerador zumbiu, e ele percebeu que não tinha ideia de que horas eram, ou quanto tempo havia se passado. Seu celular não ligava, arruinado por causa do afogamento, se ele realmente havia se afogado, se algo da noite anterior realmente havia acontecido. Ele desceu a escada até a televisão para se orientar. Era o dia seguinte. A manhã seguinte, na verdade. Ele estava no horário de corte de energia das 9h às 11h30. Ele ligou o rugby, mas depois de alguns minutos o gerador desligou, e a TV ficou preta, então ele foi pegar uma cerveja, e voltou a olhar a tela preta. Às 11h30, a energia não voltou, e ele resmungou, antes de adormecer no sofá.

Quando ele acordou por volta das 16h, ainda não havia energia elétrica e ele sabia que teria que ir buscar mais gasolina.

#

A energia elétrica ficou desligada por três dias. Piet estava perdido como sempre quanto ao seu próximo movimento. Ele não conseguia explicar os eventos e não queria pensar sobre isso também, e você não pode pensar demorado assim, pois isso será o seu fim, e você estará pensando e dizendo coisas estranhas como Marykie tinha feito. Todos os tipos de corredores surgiam no labirinto da sua mente com suas próprias entradas e saídas variadas ajudando coisas que não deveriam sair. Você tinha que ser prático antes que as coisas em sua mente começassem a se descontrolar, e a escuridão o engolfasse e você estivesse reclamando sobre criaturas na represa e o Arrebatamento, e a igreja o condenaria ao ostracismo, com seus colegas pensando que você é mau.

Era isso. Era um sonho. E esse era o fim. Ele simplesmente precisava terminar seu e-mail para Marelize. Tudo seria resolvido e a vida seguiria em frente. De volta ao normal, assim, tão fácil quanto trocar uma lâmpada. Eram 3h20 da manhã e o zumbido do gerador morreu, então as luzes e o rugby foram cortados, e mais uma vez, mais uma vez, Piet foi deixado na escuridão e no silêncio. Três dias sem energia enquanto tentava juntar os pedaços da sua vida significavam que Piet tinha esquecido de comprar mais gasolina. A escuridão parecia menos ameaçadora dessa vez, pois pelo menos ele havia alcançado um ponto de resolução.

#

– Então ja, Marelize, acho que é isso. Não tenho certeza, mas uma noite sua mãe voltou para a represa sem mim. Não sei. Talvez seja por isso que tenho dificuldade para dormir à noite agora. Talvez se eu estivesse acordado ela não pudesse ter escapado daquele jeito. Aquele psiquiatra me avisou que ela poderia precisar de vigilância constante, então ja, talvez eu tenha cometido um erro aí, mas você não pode sempre ouvir essas pessoas que inventam todo esse papo furado sobre doenças mentais e novos gêneros, e todo esse papo furado esquisito. Quero dizer, imagine o que os africâneres da velha guarda pensariam de tamanha suavidade depois de tudo que conquistamos neste país. Jissus, é uma pena.

– Não era para terminar em uma nota amarga. Então ja, agora você já sabe. Claro, por favor, não envie este e-mail para outras pessoas, pois eu já disse que é uma situação um pouco difícil e queremos que as pessoas se lembrem de sua mãe como ela era, sabe? Não como uma suicida com alguma doença mental falsa, mas apenas uma esposa e mãe africâner forte e amorosa. Uma pessoa que faz parte da igreja e está disposta a servir a Deus. Você não precisa responder ou algo assim, tudo bem, eu só pensei que você, de todas as pessoas, deveria saber a verdade. Era muita coisa para eu segurar dentro de mim.

– Desejo a todos as bênçãos de Deus e uma vida frutífera, meu amor! Lembre-se sempre de que tudo isso é plano de Deus e ele apresenta dificuldades que sempre podemos superar. Eu vou superar, e tenho certeza de que você também vai. Aproveite o Reino Unido! É muito melhor do que aqui, e mesmo que a gente não se fale, fico muito satisfeito em saber que você está em um país que realmente tem futuro.

Do seu pai amoroso,

Piet.

Piet ficou sentado por um tempo reunindo coragem. Ele sentiu sua determinação retornar e clicou em enviar o e-mail. Um e-mail que levou uma vida inteira para escrever. Um e-mail que ele sentiu que havia drenado algo de sua essência. Tudo parecia terminado agora, mesmo quando a energia acabou e seu gerador entrou em ação com aquele zumbido familiar. Pela primeira vez em algum tempo, Piet sentiu uma sensação de tranquilidade e conforto.

Piet colocou uma música famosa e relaxante e apenas sentou-se por um momento. Uma brisa calma passou e ele se lembrou de limpar os jacintos de seu quarto, e de como estava frio lá dentro por dias, e como os roxos e azuis ainda manchavam algumas paredes e teto. O cheiro de Marykie permaneceu no quarto e às vezes ele via aquela miragem cintilante de seu cabelo pulsando no teto antes de adormecer à noite. Nada para se preocupar. Apenas sua mente pregando peças nele.

Naquele momento, ele recebeu uma nova notificação por e-mail. Primeiro, ele se recusou a pensar que Marelize já havia respondido, antes de pensar melhor e dar uma olhada adequada no remetente e no assunto. Era da administração da propriedade e estava marcado como “Tragédia na propriedade”. Preocupado, ele abriu como se estivesse esperando e leu.

– Caros moradores da propriedade. Lamentamos informar sobre os trágicos eventos da noite passada, quando a família do número 57 se afogou na represa. Atualmente, não temos muitos detalhes, mas, de alguma forma, parece que todos eles entraram voluntariamente na represa por uma das entradas dos barcos e se afogaram. A filha deles foi uma das principais nadadoras olímpicas jovens a surgir na África do Sul, o que torna tudo ainda mais estranho e infeliz. Atualizações seguirão à medida que descobrirmos mais.

O joelho de Piet começou a formigar, e ele sentiu frio. Não era nada para se preocupar, pois o inverno ainda estava a todo vapor, apesar daquela chuva anormal que tinha ocorrido. Geralmente só chovia no verão em Hartbeespoort. Estava tudo bem. O joelho de Piet parou de doer, e sobre a música que ele tinha colocado para  tocar, ele podia ouvir a bela voz de coral de Marykie cantando para ele da represa. Ele pausou a música e escutou.


Mandisi Nkomo é um escritor, baterista, compositor e produtor sul-africano. Ele atualmente reside em Hartebeespoort, na África do Sul. Sua ficção foi publicada nos moldes de Afrosf: Ficção Científica por Autores Africanos, AfroSF V3 e Omenana. Seus poemass foram publicados no #The Coinage Book One, e seu trabalho acadêmico foi publicado no The Thinker. Ele também é um membro da Sociedade de Ficção Especulativa Africana. Para atualizações e informações sobre os projetos musicais e literários, siga ele no Twitter, Instagram ou Facebook. Ele também mantém um blog com o seu

Fluindo por Dentro | Lauren Beukes

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Illustration for TAAL, Omenana speculative fiction magazine
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Tradução de “Slipping” (Omenana, Issue 24, December, 2022)

Traduzido por/Translated by:

Kim Patrice Santiago Sarmento

Sophia Ribeiro Ferreira

Fluindo por Dentro

1. Vida Extravagante

O calor pressiona o táxi, tentando encontrar uma maneira de entrar pelas janelas seladas e o ar-condicionado barulhento. Prédios de apartamentos estreitos passam rapidamente de ambos os lados da via expressa, interrompidos ocasionalmente por um armazém de alguma megaloja qualquer. Poderia ser a Cidade do Cabo, pensa Pearl. Poderia ser qualquer lugar.

Vinte e três horas de viagem até agora. Ela nunca tinha estado em um avião antes.

— Então, qual é a melhor coisa sobre Karachi? — Tomislav, seu promotor, pergunta ao motorista, tentando quebrar o silêncio opressivo. – Os três estavam atordoados pela jornada, a garota, o promotor e o cirurgião, que não tirou os olhos do telefone desde que entraram no carro porque está tentando marcar uma reunião.

O condutor pensa sobre isso enquanto puxa o pequeno bigode: — Uma coisa é que esta é uma estrada muito boa. Sharah e Faisal[1]. Quase nunca há engarrafamento e, se chover, a estrada nunca alaga.

— Excelente. — Tomislav se inclina para trás, derrotado. Ele dá a Pearl um sorriso encorajador, mas ela não se sente encorajada. Ela assistiu à Copa do Mundo e às Olimpíadas na TV; ela sabe como deve ser. Ela olha através da janela, se recusando a pestanejar caso as lágrimas venham.

A estrada se estreita ao entrar na cidade e o trânsito se intensifica, caminhões buzinando e riquixás (pequena carruagem puxada a mão) cobertos de adesivos reflexivos como bolas de discoteca, que cintilavam ao sol. Passam pela cidade antiga, com seus grandiosos prédios em ruínas de tempos passados, e entram na rede de favelas de Saddar (bairro de Karachi), com barracos de concreto se apertando uns nos outros.

[1] Estrada em Karachi, Paquistão

— Kachi abadi. — O motorista lhes diz.

Pearl pronuncia baixinho. — Pelo menos os barracos não são de lata. E essa é uma diferença.

Tomislav aponta para os grafites em outro alfabeto e toca no joelho de plástico dela. — Sinais de gangues. Assim como na Cidade do Cabo.

— Ah, eles são bandidos, com certeza, — diz o motorista. — As mesmas pessoas governam o país.

— Vocês têm bandidos no governo? — Pearl está chocada.

O motorista faz um barulho com a língua e encontra o olhar dela no espelho retrovisor. — Você é uma das corredoras?

— O que te deu essa ideia? — Dr. Arturo diz, sem olhar para cima. É a primeira coisa que ele diz o dia todo. Seus polegares, instrumentos incisivos, batem na tela do telefone. Pearl esfrega as pernas conscientemente, onde os tendões são visíveis sob a junta do joelho e se entrelaçam com os neurocircuitos. — É uma vitrine. — Ele respondeu quando ela perguntou por que não poderia parecer pele. Alguns dias ela acha bonito. Mas na maioria das vezes, ela odeia ver o avesso de si mesma.

— Por que você acha que está no Paquistão? — o motorista ri.

— Você acha que alguém mais deixaria isso acontecer em seu país? — Ele esfrega o polegar e os dedos se referindo a dinheiro e os lança ao vento.

2. Repleto de Bondade

Antes da corrida, um banner enorme do +Games está pendurado por cima da entrada do Instituto Parsi de Karachi, ou IPK. Um antigo edifício colonial que foi ampliado para acomodar os corredores, a pista foi construída sobre o antigo campo de críquete e adentrava as favelas. A escola original foi transformada na vila dos atletas, as salas de aula foram convertidas em alas médicas individuais para atender às necessidades únicas deles. A de Pearl, por exemplo, tem unidades bio-herméticas e superfícies esterilizadas. A janela foi fundida para evitar a entrada de ar poluído.

Na sala vizinha, instalaram geradores extras para a Charlotte Grange depois de ela ter ligado o seu exoesqueleto e derrubado a energia de todo o prédio. Pearl podia ouvi-la resmungando através das paredes. Ela não sabe o que é que a Siska Rachman tem, mas será que, tecnicamente, quem teve morte cerebral ainda precisa comer?

Ela se senta na beira da cama, folheando o programa oficial enquanto Tomislav anda curvado sobre o telefone pelo quarto com a mão descansando no nariz. — Ajda! Qual é? — ele diz, daquele jeito eslavo que faz a primeira parte da frase soar pesada. Como o próprio Tomislav, ainda carregando seu volume de halterofilista (levantamento de peso olímpico) todo comprimido no peito e pescoço. Ele não compete mais, mas os esteroides o mantêm em forma. As luzes de néon e o brilho branco das paredes fazem seus olhos parecerem mais azuis, sua pele mais pálida. — Pêssego — ela aprendeu na escola, como se pêssego e marrom fossem magicamente menos divisivos do que preto e branco, e palavras pudessem resolver tudo. Mas a pele de Tomislav não é o laranja quente de um fruto de verão, é como o chá com leite que ela bebe em casa.

Tomislav tem pelos negros e grossos nos braços. Ela perguntou sobre isso quando se conheceram na casa do Amado no morro. Catorze anos, muito jovem e muito raivosa para respeitar os mais velhos, apesar de sua mãe ter engasgado com sua grosseria e ter batido na cabeça dela.

Tomislav riu: — Testosterona, gatinha. — Ele tocou a pennugem acima do lábio superior dela. — Você também tem, é isso que te faz tão forte.

Desde então, ele a obrigou a fazer depilação a laser em todos os seus pelos indesejados. No esporte, imagem é tudo. Até mesmo neste.

Ele a vê olhando para ele e fala mais alto. — Você quer conseguir uma reunião, Arturo, precisamos ter algo para mostrar. — Ele dá um toque dramático no telefone para encerrar a chamada. — Aquele cara! O que ele acha que  estou fazendo o dia todo? Tudo bem, gatinha? — Ele a pega pelos ombros, faz uma leve massagem. — Você tá se sentindo bem?

— Bem. — Mais do que bem, com as vozes da multidão vibrando baixo através do concreto, e a linha de largada puxando suas entranhas, passando por aquela porta, atravessando a quadra, descendo a rampa. Ela viu pessoas subindo nos telhados ao redor da pista com cobertores.

— Essa é minha garota. — Ele arranca o programa das mãos dela. — Por que você está olhando para isso? Você conhece cada movimento dessas garotas.

Ele se refere a Siska Rachman. É só disso que todo mundo quer falar, os jornalistas, as corporações. Pearl está cansada disso, das entrevistas para canais que ela nunca ouviu falar. Ninguém lhe disse quanto disso seria falar sobre corridas.

— Pronto quando você estiver. —  Dr. Arturo diz na cabeça dela, falando pelo implante de áudio em sua cóclea. Ele volta a ficar online como se nunca tivesse saído, verificando os diagnósticos. — Controle sua adrenalina, Pearl. Você precisa estar calma para a instalação. — Ele costumava narrar os processos químicos, os balanços de hormônios, a captação de oxigênio nano-amplificada, a mudança das articulações robóticas, a explosão de dopamina, mas parecia demais como estar na escola; palavras sendo enfiadas em sua cabeça e todas inúteis de qualquer maneira. Você não precisa nomear algo para entendê-lo. Ela sabe como se sente quando atinge seu ritmo e o mundo se abre sob seus pés.

— Ele está pronto. — Ela repete para Tomislav. — Tudo bem, vamos começar o show.

Pearl obedece e levanta sua camiseta com o logotipo da bebida energética russa – um dos patrocinadores de Tomislav, embora isso valha apenas uns trocados. Ela conheceu os homens que pagaram para que ela estivesse aqui na casa de vidro no morro, usando camisas de golfe chamativas, sapatos e relógios brilhantes. Ela nunca os viu balançar um taco nem sabe seus nomes, mas todos queriam apertar a mão dela e tirar uma foto com ela.

Ela toca toda a costura rígida que corre em forma de um gancho em J ao lado de seu estômago, paralela à cicatriz de sua histerectomia, e rasga a pele de velcro.

— Me deixe. — Tomislav diz, ajoelhando-se entre suas pernas. Ela mantém a carne aberta enquanto ele coloca uma mão dentro de seu abdômen. Não dói, não mais. O velcro libera um anestésico local quando abre, mas ela pode sentir um desconfortável puxão dentro, como uma cólica.

Tomislav torce as válvulas de ambos os lados, desconecta o estômago dela e o retira. Ele o coloca em uma biocaixa estéril e o conecta a um fluxo sanguíneo. Quando ele se vira de volta, ela já está enrolando o acordeão do intestino artificial, como um mágico puxando fitas da palma da mão. Isto cheira a bactérias de laboratório, com um leve odor de fezes. Ela entrega a Tomislav e ele franze o nariz.

— Isso apenas demonstra, — ele diz, dobrando a tubulação plástica enrugada e guardando-a. — Que você pode tirar a carne do ser humano, mas eles ainda estão cheios de merda!

Pearl sorri obedientemente, embora ele tenha feito a mesma piada nas últimas três semanas – desde que instalaram o novo sistema.

— Quase lá. — Ele sustenta o biodistribuidor e ela acena com a cabeça e desvia o olhar porque isso a deixa enjoada de assistir.

— É um bioplug elegante, fino como uma hóstia de Comunhão e repleto de bondade. — Diz o Dr. Arturo. — É como um cereal matinal fortificado. Hormônios e nanotecnologia em vez de vitaminas e ferro.

Tomislav empurra sua mão dentro dela novamente, procurando cegamente pelo nó conector no que resta de seu verdadeiro trato intestinal, uma polegada e meia do tecido mais absorvente do corpo para melhor captação química.

— Opa! Peguei seu rim! Brincadeira. Já está dentro.

—  Tudo pronto. — Dr. Arturo confirma.

— Então vamos. — Pearl diz, levantando-se em suas lâminas.

3. Forças Maiores do que Você

— Você teria que ser algum tipo de idiota. — Ela disse à mãe que era uma aposta entre os jovens, mas não era. Era ela, apenas ela, tentando correr contra o trem.

O trem venceu.

4. O Porquê de Você me Ter

O drone inseto voa diante do rosto de Pearl, a lente se aproximando de seus lábios para captar as palavras que ela murmura em Xhosa e transmiti-las na tela. — Ndincede nkosi undiphe amandla. (ajude-me, Senhor, me dê forças)

Ela se abaixa para segurar as pontas curvadas das pernas, para se alongar, sim, mas também para esconder a boca. Supostamente deveria ser privado, ela pensa. Mas isso é uma ideia que pertencia a outra garota: àquela de antes dos acordos de Tomislav e da voz do Dr. Arturo em sua cabeça passando os diagnósticos, antes do Amado, antes do trem, antes de tudo isso.

— É porque você é muito taciturna, gatinha. — Tomislav tenta confortá-la. — Você dá migalhas às pessoas e elas ficam com fome de mais. Se você apenas falasse mais. — Ele está mexendo na gravata enquanto Brian Corwood, o apresentador, se move pelo tapete inicial com seu microfone, falando com Oluchi Eze, que está mostrando sua cauda para as câmeras.

Pearl não sabe como falar mais. Ela esgotou as palavras e, as que o Dr. Arturo quer que ela diga, fazem com que ela se sinta mastigando batatas cruas. Ela precisa pronunciar as sílabas. Ela passa a língua sobre os dentes para se livrar da sensação de que alguém instalou um circuito atrás de seus incisivos. São os novos medicamentos na hotbed, diz Tomislav. Ela tem que se acostumar, como os drones, que voam inesperadamente para perto dela. Eles são assustadores – câmeras conectadas a gafanhotos, com cérebros suficientes para responder aos comandos. Insetos são energia barata.

Em algum lugar, numa sala de controle, o Dr. Arturo observa seu recuo dos drones e fala palavras tranquilizadoras em sua cabeça: — O que você acha, Pearl? Mais sofisticados do que alguns atletas que conhecemos. — Ela olha para Charlotte Grange, que também está esperando para ser entrevistada. A grande garota loira treme e se agita, cerrando a mandíbula, seu exoesqueleto rangendo em antecipação. Os amortecedores neurais mal conseguem segurá-la.

A multidão ruge de impaciência, dezenas de milhares de pessoas atrás de uma curva de vidro de segurança reforçado nas arquibancadas bem acima da ação. Os telhados também estão lotados e há crianças pulando nos andaimes de um prédio antigo com vista para a pista.

As pessoas de terno, aquelas que o Dr. Arturo e Tomislav querem conhecer, assistem de quartos de hotel com ar-condicionado a cinco quilômetros de distância. Empresas médicas e farmacêuticas procurando as últimas inovações em um lugar onde tudo é permitido: drogas, próteses, robótica, nanotecnologia. É para isso que as pessoas vêm. Elas assistem aos milhões no canal proprietário. O drama. Como assistir à Fórmula 1 pelos acidentes de carro.

            — Todas essas pessoas, gatinha, — diz Tomislav. — Elas não se importam se você vencer. Elas estão apenas esperando você explodir. Mas você sabe  porque está aqui.

            — Para correr.

            — Essa é minha garota.

— Respire devagar. — Avisa o Dr. Arturo. — Você está superestimulada.

O drone inseto responde a uma mão invisível na sala de controle e gira ao redor dela, captando todos os ângulos. Brian Corwood se aproxima dela, o microfone estendido como um aperto de mão e câmeras aladas zumbindo atrás de seu ombro. Ela se mantém muito ereta. Ela sabe que sua mãe e o Amado estão assistindo em casa. Ela quer deixar Gugulethu orgulhosa.

— Ndincede nkosi. (Ajude-me, Senhor) — Ela murmura as palavras e as vê aparecerem nas grandes telas em legendas abaixo de seu rosto. Eles já trabalham no intuito de  traduzi-las. Não é difícil descobrir que ela está falando Xhosa.

— Pearl Nit-seeko. — O apresentador diz. — A garota milagrosa da Cidade do Cabo. Aleijada quando tinha catorze anos e aqui está ela, dois anos depois, nos +Games. Um sonho realizado!

Pearl contou a história tantas vezes que não consegue lembrar quais partes são inventadas ou enfeitadas. Uma vez, ela disse a um jornalista que viu seu pai ser morto na TV durante as greves ilegais nas minas em Polokwane (cidade da África do Sul) e como ela cobriu os ouvidos para não ter que ouvir o pa-pa-pa-pa-pa dos tiros enquanto as pessoas caíam na poeira. Mas agora ela tem que se manter fiel a isso. Tragédia faz uma história melhor do que a realidade de um bêbado de meia-idade inútil que deixou sua mãe para viver com a filha de um dono de bar em Nyanga (cidade em Zimbabwe) para não ter que pagar a conta do bar. Quando Pearl começou a ficar famosa, seu pai fez um escândalo nos tabloides locais até Tomislav pagar para ele ir embora. Você pode comprar sua própria verdade.

— Você pode nos contar sobre sua tecnologia, Pearl? — Brian Corwood diz, como se isso fosse um show sobre estrelas de cinema e vestidos brilhantes.

Ela responde no piloto automático. Os órgãos removíveis, o banho de nanotecnologia em seu sangue que melhora a absorção de oxigênio. Conectividade neural que abre os receptores para os hormônios e drogas despachados pelo biodistribuidor. Tomislav a treinou nas especificações técnicas dignas de notícia, os detalhes que fazem os investidores ficarem atentos.

— Eu não posso mostrar. — ela se desculpa, levantando a camisa timidamente para deixar as câmeras aproximarem da cicatriz. — Não é um ambiente estéril.

— Então, aí dentro é oco? — Corwood finge bater em sua barriga.

— Malha de grafeno de qualidade cirúrgica reforçada. — Ela tamborila levemente os dedos sobre a pele, como frequentemente ensaiado. Parece espontâneo e mostra seu abdômen sarado.

Ela ouve a voz do Dr. Arturo em sua cabeça. — Coloque a camisa para baixo agora. — Ele instrui. Ela se cobre. A estrela não quer deixar os espectadores verem muito. Como com sexo. Ou pelo menos é o que lhe disseram. Ela nunca terá filhos.

— Essa é a sua arma secreta? — Corwood diz, provocando, porque ninguém nunca revela as especificações exatas, não até terem um comprador.

— Não. — ela diz. — Mas eu tenho uma.

— O que é, então? — Corwood pergunta, animado.

            — Deus. — Ela diz e encara desafiadoramente as câmeras insetos que se aproximam para um close-up.

5. Coisas Que Você Não Pode Esconder

Os cotos de suas pernas estão envoltos em ataduras novas, mas as feridas ainda cheiram mal, como algo preso no ralo. Sua mãe quer encharcar as ataduras com perfume.

— Eu não quero! Me deixa em paz! — Pearl bate na garrafinha nas mãos de sua mãe que cai no chão com um estrondo. Sua mãe tenta agarrá-la. A garota cai da cama com um grito. Ela se arrasta com os cotovelos, chorando. Seu tio Tshepelo a ergue pelas axilas, como se fosse um saco de farinha de sorgo, e a coloca na mesa da cozinha.

            — Basta, Pearl. — Ele diz, seu tio mais novo e bonito. Quando era pequena, ela dizia à mãe que iria se casar com ele.

— Eu te odeio! — ela grita e tenta chutá-lo com os cotos, mas ele se desvia e vai até a chaleira enquanto sua mãe fica na porta, com o rosto nas mãos.

Pearl não voltou à escola desde o que aconteceu. Ela se vira para a parede quando seus amigos vêm visitá-la, recusando-se a falar com eles. Durante o dia, ela assiste a novelas e infomerciais, deita na cama de sua mãe, encara o céu e ouve o barulho do dia a dia: o ciclo do trânsito, crianças indo para a escola, cães latindo, o chamado para a oração vibrando nos alto-falantes decadentes da mesquita, o trânsito novamente e homens bêbados brigando no bar. Talvez um deles seja seu pai. Ele não a visitou desde o acidente.

Tshepelo prepara chá doce com leite para ela e sua mãe, se senta e fala bobagens, realmente, sobre seu dia na fábrica, preparando lotes de patês que ele diz serem como manteiga saborizada para pessoas ricas, e como ela deveria ver a estúpida touca azul de plástico que ele tem que usar para cobrir o cabelo em caso de contaminação. Ele fala e fala até ela se acalmar.

Finalmente ela concorda em ir à igreja – um serviço especial em Khayelitsha Site B (um município da África do Sul). Ela veste seu vestido de lã, cinza como o céu de inverno da Cidade do Cabo, e meias verdes, que ficam horrivelmente soltas na junção onde deveriam estar suas pernas.

A chuva pontilha suas roupas e encharca o chapéu de sua mãe, fazendo-o cair enquanto ela anda rapidamente atrás de Tshepelo, que carrega Pearl nos braços como um cachorro ferido. Ela odeia o jeito como as pessoas desviam os olhos.

A igreja não é mais do que uma tenda em um estacionamento, embora as pessoas cantem como se estivessem em uma catedral luxuosa na Inglaterra, como na TV. Pearl se senta rigidamente no final do banco entre seu tio e sua mãe, olhando fixamente para as crianças pequenas que correm para espiar. — Vaya. — Ela sussurra para eles. — O que vocês estão olhando? Vão embora.

Na metade do culto, dois dos ministros trazem a cadeira de rodas nova como se fosse um prêmio em um programa de TV, adornada com uma grande fita roxa. Eles a carregam escada abaixo nos ombros e a colocam na frente dela. Ela olha para baixo e murmura algo. — Nkosi.

Eles enfiam os dedos em suas axilas, essas mãos de estranhos nela, e a carregam até a cadeira. Quando a colocam, ela se sente presa. Ela geme e balança a cabeça.

— Ela está tão agradecida. — Sua mãe diz e a pressiona para baixo com uma mão no ombro. Aleluia, todos dizem. Aleluia. O coro começa a cantar e Pearl deseja que Deus a tivesse deixado morrer.

6. Calor

O cérebro de Pearl está microssegundos atrás de seu corpo. O estouro do tiro de partida é registrado como um som depois que ela já está correndo.

Ela está ciente dos outros corredores como formas quentes e tensas na periferia. Tomislav a fez estudar o modo como eles correm. Charlotte Grange, grunhindo e galopando, usando os braços do exoesqueleto para cavar no chão, como um macaco; Anna Murad com sua robótica conectada aos nervos; Oluchi Eze com sua cauda esculpida e ossos delicados, como um pássaro dinossauro. E na pista cinco, mais longe dela, Siska Rachman, com o rosto perfeitamente calmo e vazio, os olhos fixos na linha de chegada, a dois quilômetros de distância. Uma garota morta controlada remotamente por um tetraplégico em uma cama de hospital. Esse é o problema com a famosa Siska Rachman. Ela vence muito, mas a rede sempre tem atraso.

Você tem que habitar seu corpo. Você precisa estar nele. Não apenas porque as regras dizem isso, mas porque senão você não poderá senti-lo. O impacto do pé no chão, o vento na pele, o suor escorrendo pelas laterais. Nenhum biofeedback fará a diferença.

— Controle o ritmo. — Dr. Arturo diz em sua cabeça. — Vou te dar um impulso de glicose quando você atingir oitocentos metros.

Pearl se sintoniza com a respiração rítmica e estica as pernas a cada passo, ciente de tudo: a textura da pista, a imensidão do céu, o cheiro de suor, poeira e óleo. Uma sensação floresce em seu peito – um calor feroz, um brilho dourado, e ela sente o ímpeto do amor Dele e sabe que Deus está com ela.

Ela cruza em terceiro, pescoço a pescoço com Siska Rachman e milissegundos atrás de Charlotte Grange, que se joga na linha de chegada com um som de rasgo molhado. O exoesqueleto cai em uma confusão de garota e metal, forçando Rachman a desviar.

— Uma bruta. — Dr. Arturo sussurra em seu ouvido. — Não como você, Pearl.

7. O Amado

O carro chegou para buscá-los, Pearl, sua mãe e seu tio. Um BMW preto brilhante com calotas que transformam a luz em lanças. As pessoas saíram de suas casas para ver.

Ela está vestindo seu vestido preto, mas está um calor escaldante, e o suor escorre pela nuca e faz seu colarinho coçar.

— Não coce. — disse sua mãe, segurando suas mãos.

Illustration for TAAL, Omenana speculative fiction magazine
AI art created with MidJourney

O carro corta entre os barracos de lata e as casas do programa do governo, sob os olhares curiosos, passando pela rodovia em direção às terras vinícolas, passando pela universidade e pelas casas padronizadas dos ricos, além do campo de golfe onde carrinhos passam entre os aspersores, pelas colinas com vinhedos e bandeiras que atraem os turistas. Depois, segue por uma estrada lateral e através de um grande portão preto que se abre para uma entrada ladeada por cicas espinhosas.

Eles saem, atordoados pelo calor e por outras coisas – o tamanho da casa, a madeira e o vidro flutuando no topo da colina. Seu tio luta para abrir a cadeira de rodas que o pessoal do Khayelitsha Site B comprou para ela, até que o motorista dá a volta e diz, — Me deixe ajudá-lo com isso, senhor. — Ele empurra com força o assento que se encaixa no lugar. Ele os acompanha até um hall de entrada fresco com pisos de madeira e esculturas de metal de guepardos guardando a escadaria. Uma mulher vestida com um vestido vermelho e branco e um lenço na cabeça, sorri e os conduz até a sala onde três homens estão esperando: um avô com dois homens brancos flanqueando-o como os felinos de pedra ao lado da escada. Um magro, um cabeludo.

— O Amado. — Diz sua mãe, desviando os olhos. Seu tio abaixa a cabeça e levanta as mãos em sinal de respeito.

            O medo deles deixa Pearl com raiva.

O avô acena para que eles se aproximem. — Venham, venham. — A calça de seu terno azul-escuro tem vincos dobrados tão afiados quanto papel, e seus sapatos são pretos como carvão.

— Então, esta é Pearl Nitseko. — diz o Amado, testando o peso do nome dela. — Ouvi falar de você.

O homem branco esquelético a encara. Ela descobrirá mais tarde, que ele é o advogado que faz ela e sua mãe assinarem papéis e mais papéis. O outro, de ombros largos, mexe nas algemas, puxando-as sobre seus pulsos peludos, mas ele está observando-a mais intensamente que todos.

— O quê? — Ela exige. — O que você ouviu?

Sua mãe ofega e dá um tapa na cabeça dela.

O Amado sorri. — Que você tem fogo dentro de si.

8. Tautologias Temerosas

Tomislav apressa Pearl a passar pelos manifestantes religiosos do lado de fora do estádio. Credos e seitas se uniram em indignação moral, cantando, — Anti-natural! Anti-divino! Anti-sagrado! — Eles cantam as palavras em inglês em vez de urdu para o benefício dos drones. — Vamos lá! — Tomislav passa por ela, levando-a em direção a um carro de transporte que os levará para o jantar. — Esses malucos não têm coisas maiores com que se preocupar? O governo tirânico deles? As crianças famintas? — Pearl pula no transporte e ele se lança atrás dela. — Extremismo eu posso lidar. — Ele bate a porta. — Mas tautologia? Isso é imperdoável. — Pearl fecha o zíper da sua roupa de corrida.

A multidão avança em direção ao transporte, batendo nas janelas com as palmas das mãos. — Monstro! — uma mulher grita em inglês. — Deus te odeia.

— O que é tautologia? — ela pergunta.

— Repetição desnecessária.

— Não é isso que o medo sempre é?

— Eu esqueço que você é rápida e inteligente. Sim. Eles que se danem, — diz Tomislav. O transporte começa a se mover e ele bate palmas.

— Você foi bem lá fora.

— Você conseguiu uma reunião?

— Nós conseguimos uma reunião, gatinha. Eu sei que você pensa que sua grande competição é Siska, mas é Charlotte. Ela continua avançando cada vez mais.

— Ela se machucou.

— Rompeu um tendão, dizem as notícias, mas ela ainda vai correr amanhã.

O Dr. Arturo, sempre ouvindo, intervém. — Eles têm carne de reposição no laboratório, podem produzir um tendão. Mas não é uma boa estratégia a longo prazo. Isso é uma guerra, não uma batalha.

— Eu achei que não podíamos lutar. — diz Pearl.

— Você está falando com o doutor? Diga a ele para guardar sua conversa para os investidores.

— Tomislav diz… — ela começa.

— Eu o ouvi. — Diz Dr. Arturo.

Pearl olha para os manifestantes. Um dos cartazes escritos à mão fica em sua mente. — Eu fui feita de forma temerosa e maravilhosa. — Diz.

9. Ela Cresceu

Pearl observa os ônibus chegarem de sua cama no andar de cima na sede da Igreja Pentecostal do Amado. Um quarto de hóspedes adaptado para os propósitos, com uma enfermeira sentada do lado de fora e máquinas que sibilam e bipam. As drogas a deixam tonta. Ela tem impressões, mas não memórias. O barulho da sirene da ambulância e a sensação de ser importante. Visitantes. Homens de shorts de golfe e um militar com bochechas gordas. Relógios de ouro e estrelas no uniforme, para combinar com a estrela dourada na torre que ela pode ver da janela e as colunas gordas e cônicas como balas na entrada.

— Você está pronta? — diz o Dr. Arturo. Ele veio da Venezuela especialmente para ela. Ele tem mãos gentis e olhos bondosos, ela pensa, embora ele seja o único que tirou tudo dela. Excesso de bagagem, ele diz. Dói onde foi removido, seus órgãos femininos, seu estômago e suas entranhas.

Ele diz que procuraram alguém como ela por muito tempo, ele e Tomislav. Eles tinham desistido de encontrá-la. E agora! Agora veja onde estão. Ela é muito sortuda. Ela sabe disso porque todos continuam dizendo a ela.

Dr. Arturo a leva até o elevador onde Tomislav está esperando.

O cirurgião é muito modesto. Ele não gosta de aparecer na câmera. — Não se preocupe, eu estarei com você. — Ele diz e dá um tapinha em seu rosto perto de sua orelha.

— Tudo é sobre você, gatinha. — Tomislav diz, empurrando-a para fora em um enorme corredor ecoante sob um céu pintado com anjos e o Amado, em vestes roxas flutuantes, sorrindo para as pessoas que entram pelas portas, as mulheres vestidas de vermelho e branco e os homens de blêizeres azuis e camisas brancas. Desta vez, ela não se importa que olhem para ela.

Eles abrem caminho para a cadeira de rodas, passando pelas portas duplas, pelos porteiros, para uma enorme sala com um teto enrugado e brilhante como uma concha do mar, varandas prateadas e carpetes vermelhos. Ela se sente como uma estrela de cinema, o cobertor vermelho sobre seus joelhos é seu vestido de festa.

De algum lugar profundo na igreja, mulheres levantam suas vozes em ululação e todos os pelos do corpo de Pearl se arrepiam como se ela fosse um gato. Tomislav vira a cadeira de rodas e a estaciona ao lado de um enorme trono dourado com folhas e flores esculpidas e uma coroa de espinhos. Ele dá um tapinha em seu ombro e a deixa ali, encarando a multidão, milhares de pessoas no auditório, todos olhando para ela. — Sorria, Pearl. — Diz o Dr. Arturo, sua voz suave dentro de sua cabeça, e ela tenta, ela realmente tenta.

Um grupo de mulheres sai dos bastidores em direção ao palco, balançando com tigelas de madeira nos quadris, suas mãos mergulham nas tigelas como cisnes bicando algo, jogando pétalas de rosa à sua frente. A multidão se junta a ululação, e isso reverbera pela igreja. Halalala.

O Amado sobe ao palco. Pearl tem que cobrir os ouvidos com o barulho que o saúda. Mulheres estão chorando nos corredores. Homens também, chorando de felicidade ao vê-lo.

O Amado estende as mãos para acalmá-los. — Silêncio, por favor, irmãos e irmãs da Pentecostal. — Ele diz. — A paz esteja com vocês.

— E com você também. — A multidão responde em uníssono. Ele coloca as mãos nas costas da cadeira de rodas.

— Hoje, nos reunimos para testemunhar um milagre. Minha filha, você se levantará e caminhará?

E Pearl o faz.

10. Chamado para a Oração

O restaurante é chique, um bufê de comida paquistanesa, korma e tikka e kebabs e bandejas de prata com doces pegajosos. Os atletas têm que posar para fotos e dar mais entrevistas para Bryan Corwood e outros. A jornalista com mechas roxas no cabelo e um anel de metal no lábio pergunta a ela: — Você não tem medo de morrer lá fora? — Antes que Tomislav intervenha.

— Qual é? Que tipo de pergunta é essa? — Ele diz.

Mas os atletas realmente não podem comer, e há um ônibus que os leva para casa cedo para que estejam revigorados no dia seguinte, enquanto os promotores se afastam, um por um, em carros pretos elegantes que os levam para outras partes da cidade, parecendo tensos.

— Não se preocupe, gatinha. — Tomislav sorri, mostrando todos os dentes, e dá um tapinha na mão dela.

De volta ao seu quarto, Pearl encontra um tapete de oração que pode estar alinhado em direção à Meca. Ela telefona para a recepção para perguntar. Ela se prostra no quadrado de carpete, leste, oeste, para ver se é diferente, se seu Deus ficará irritado.

Ela entra na Internet para verificar as notícias e as apostas. Suas chances melhoraram. Há muita especulação sobre a lesão de Grange, e se Rachman será desclassificada. Há fotos de Oluchi Eze posando nua para uma revista masculina, sua cauda enrolada sobre suas partes.

Pearl clica em outra coisa e observa a si mesma no replay, seus golpes, sua postura, a alegria em seu rosto. Ela espera que o Dr. Arturo comente, mas o implante coclear apenas chia com uma estática leve.

— Mama? Você viu a corrida? — A conexão de vídeo com Gugulethu trava e treme. Sua mãe está com a câmera do telefone apontada para o alto, então ela só pode ver os olhos e o topo da cabeça de sua mãe.

— Exibiram no centro comunitário. — Diz sua mãe. — Todos ficaram muito animados.

— Você deveria ter ouvido eles torcendo por você, Pearl. — Diz seu tio, inclinando-se sobre o ombro de sua mãe, puxando a câmera para baixo para que fiquem enquadrados.

Sua mãe franze a testa. — Não sei se você deveria usar essa blusa, não é realmente a sua cor.

— É do meu patrocinador, Mama.

— Estamos orando para que você se saia bem. Todos estão orando por você.

11. Deserto

Pearl tem um sonho em que ela, Tomislav e Jesus estão de pé na varanda do prédio principal do Instituto Parsi de Karachi olhando para as favelas. A fina areia dourada se ergue como água entre os barracos de concreto, entrando pelas janelas, engolindo os telhados, impulsionada pelo vento.

— Você notou que há apenas um conjunto de pegadas, Pearl? — Jesus pergunta. A areia sobe, engolindo as casas, correndo para preencher as lacunas, a natureza assumindo o controle. — Você sabe por que isso acontece?

— É porque você levou as malditas pernas dela, Senhor? — Tomislav diz.

Pearl não consegue ver pegadas no deserto. A areia se move rápido demais.

12. Flores Raras

Bem acordada. Meia-noite e meia. Ela está deitada na cama olhando para o teto. Dr. Arturo deveria aumentar sua dopamina e melatonina, mas ele está ocupado. A reunião correu bem, então. A mensagem de Tomislav no telefone confirma isso. — Boas notícias! Conto de manhã. Durma bem, gatinha, você precisa.

Ela revira o pensamento na cabeça e tenta entender como se sente. Feliz. Isso significa que ela poderá comprar uma casa para sua mãe e pagar para que seus primos estudem numa escola particular e fundar a Academia de Esportes Pearl Nitseko para Meninas em Gugulethu. Ela nunca mais terá que correr. A menos que queira.

A ideia do dinheiro pesa em seu peito.

Ela balança os cotos para o lado da cama e prende as lâminas. Ela precisa sair, pegar um pouco de ar.

Ela percorre os corredores do velho prédio. Há uma festa no campo de críquete lá fora, com barracas de cerveja e o burburinho de pessoas que não precisam correr amanhã. Ela se desvia, voltando para o desgastado prédio colonial do IPK, na esperança de chegar à pista de corrida e correr para extravasar.

A pista está cercada e trancada, mas o segurança está distraído com seu telefone, preso em outro mundo de blocos coloridos deslizantes. Ela se agarra às sombras do arco, passando por ele e entrando mais fundo no prédio, seguindo para onde as portas a levarem.

Ela sai em um salão ao redor de um poço de azulejos afundados. Uma antiga piscina. Siska Rachman está sentada na beirada, balançando os pés no fantasma da água, seus cabelos escuros ao redor de seu rosto perfeitamente vazio. Pearl se abaixa ao lado dela. Ela não consegue resistir. Ela dá um peteleco na testa de Rachman.

— Heita. Alguém aí dentro?

O rosto pisca e, de repente, os olhos estão vivos e furiosos.

Ela agarra o pulso de Pearl. — Claro que estou. — Ela estala.

— Desculpe, eu não pensei…

Siska já perdeu o interesse. Ela solta o pulso de Pearl e afasta o cabelo do rosto. — Então, você também não consegue dormir? Me pergunto o porquê.

— Muito nervosa. — Diz Pearl. Ela tenta ser provocadora, como Tomislav seria. — Eu tenho uma competição difícil.

            — Talvez não. — Siska franze a testa. — Eles vão me desqualificar, porra.

Pearl acena com a cabeça. Não quer se desculpar novamente. Ela se sente tímida perto de Siska, a garota mais velha com suas sobrancelhas espessas e nariz afilado. Os seis anos de diferença entre elas parecem um abismo intransponível. — Eles acham que Charlotte é humana? — Siska explode. — Charlotte é um grande animal burro. Como ela é mais humana do que eu?

— Vocês são duas pessoas. — Pearl tenta explicar.

— Você era meia pessoa anteriormente. Isso conta contra você?

            — Não.

— Você sabe o que isso costumava ser? — Siska bate nos azulejos azuis.

— Uma piscina?

— Eles não conseguiam fazer a manutenção. Essas coisas são caras de manter. — Siska olha para Pearl. Na luz que entra pelo átrio de vidro, cada cílio se destaca em forte contraste contra o brilho dos seus olhos. — Eles drenaram toda a água, mas havia uma criança que estava… danificada, no cérebro, e a única coisa que ele podia fazer era cultivar orquídeas. Então, foi isso que ele fez. Ele transformou este lugar em um jardim e as vendeu daqui por anos, até ficar velho. Agora acabou.

— Como você sabe disso?

— O segurança me contou. Nós fumamos cigarros juntos. Ele queria que eu fizesse um boquete nele.

— Oh. — Pearl recua.

— Ei, você está usando lentes?

Ela sabe o que significa. As lentes de transmissão. — Não. Eu não faria isso.

— Eles vão te usar e te esgotar, Pearl Nit-seeko. Então você vai implorar para fazer um boquete em algum segurança gordo, só por trocados.

— É Ni-tse-koh.

— Não importa. Você diz tumate, eu digo ni-tse-koh. — Mas Siska acerta desta vez. — Você acha que é tudo sobre você. Sua segunda chance e tudo o que você tem que fazer é correr até o coração parar. Mas é um show de talentos, e eles não se importam com a corrida. Você já conseguiu um contrato?

— Meu promotor e meu médico tiveram uma reunião.

— Isso é alguma coisa. Disseram com quem?

— Não tenho certeza.

— Farmacêutica ou médica?

            — Eles não me disseram ainda.

— Ou militar. Militar é bom. Ouvi dizer que os britânicos estão fora este ano. É o que você quer. Quero dizer, quem sabe o que vão fazer com isso, mas por que você se importa, ratinha de laboratório? Contanto que você receba seu pagamento.

— Você está bêbada?

— Meu corpo está bêbado. É que eu sou uma menina má. Por que você se importa? Estou fora, irmã. E você está dentro, com uma chance. Não seria incrível se você vencesse? Garotinha da África.

— Não é um país.

— Que pena, sinto muito por você.

— Deus me trouxe aqui.

— Oh, esse cara? Ele só traz problemas. E Ele não existe.

— Você não deveria dizer isso.

— Como você sabe?

— Eu posso senti-Lo.

— Você ainda pode sentir suas pernas?

— Às vezes. Pearl admite.

Siska se inclina para frente e a beija. — Você sentiu alguma coisa?

— Não. — Ela responde, limpando a boca. Mas isso não é verdade. Ela sentiu o hálito de Siska, ardendo com álcool, e a maciez dos lábios dela e sua língua brincando, surpreendentemente quente para uma garota morta.

— Pois é. — Siska suspira. — Eu também não. Você tem um cigarro?

13. Espaços Vazios

A pista cinco está vazia e o estádio está fervilhando com a notícia.

— Não pensei que eles realmente a baniriam. — Tomislav diz. Ela percebe que ele está de ressaca. Ele fede a suor e álcool e há um vinco na testa logo acima do nariz que ele continua esfregando. — Você quer ouvir sobre a reunião? Foi grande. Maior do que esperávamos. Se isso der certo, Gatinha…

— Quero me concentrar na corrida. — Ela está prestes a chorar, mas não sabe o porquê.

— Ok. Você deveria tentar vencer. De verdade.

A arma dispara. Eles correm pela pista. Cada passo parece mais difícil hoje. Ela não dormiu o suficiente.

Ela vê algo acontecer pelo canto do olho. A cauda de Oluchi atinge Charlotte, talvez de propósito.

— Merda. — Grange diz e tropeça em seu exoesqueleto. Tudo desaba sobre Pearl, metal quente e pele, uma confusão de membros e fogo ao seu lado.

— Levante-se. — Dr. Arturo grita em sua cabeça. Ela nunca o ouviu tão perturbado antes.

— Ai. — Ela consegue dizer. Ao lado dela, Charlotte está se levantando, um retalho solto de músculo pendurado na perna, onde tentaram fixá-lo esta manhã. A moça enorme toca o local e sibila de dor, mas seus olhos já estão focados na linha de chegada, em Oluchi avançando, sua cauda balançando, Anna Murad se esforçando atrás dela.

— Levante-se. — Dr. Arturo diz. — Você tem que se levantar. Estou ativando adrenalina. Bloqueadores de dor.

Pearl se senta. É difícil respirar. Sua regata está molhada. Um pequeno pedaço de osso cinza se projeta através da pele sob seu seio. Charlotte está mancando em seu exoesqueleto, arrastando a perna, engrenagens rangendo.

— Isso é o que eles querem ver. — Dr. Arturo insiste. — Você precisa provar a eles que não é a hidráulica que te leva adiante.

— Não é. — ela ofega. O som é úmido. É como respirar por um snorkel no banho quando há água presa no sifão. Os drones zumbem ao redor dela. Ela pode ver seu rosto grande na tela. Sua mãe está assistindo em casa, toda a congregação.

— Então prove. Por que você está aqui?

Ela começa a andar, depois a correr, segurando a costela para evitar os solavancos. Cada passo a rasga por dentro. Pearl pode sentir as coisas deslizando por dentro. Sua integridade estrutural foi comprometida, ela pensa. A malha abdominal se rompeu e onde costumava estar seu estômago, há um buraco negro que está puxando tudo para baixo. Seu coração está deslizando.

Ndincede nkosi, ela pensa. Por favor, Jesus, me ajude.

            Ndincede nkosi undiphe amandla. Por favor, Deus, me dê força.

Yiba nam kolu gqatso. Esteja comigo nesta corrida.

Ela pode senti-Lo. O brilho dourado que começa em seu peito ou, se for sincera consigo mesma, mais abaixo. No fundo do seu estômago.

Ela contrai o abdômen e pressiona a mão contra o esterno para impedir que o coração deslize para dentro de suas entranhas – onde costumavam estar suas entranhas, onde o biodistribuidor está.

Deus está comigo, ela pensa. O que importa é que você sinta isso.

Pearl Nitseko corre.


Lauren Beukes

Lauren Beukes é uma autora sul-africana premiada e internacionalmente conhecida, autora de The The Shining Girls, Zoo City e Afterland, entre outras obras. Seus romances foram publicados em outros 24 países e foram adaptados para o cinema e para a televisão. Ela também é uma autora de HQs, roteirista, jornalista e produtora de documentários. O seu novo romance Bridge foi publicado em agosto de 2023.

Memórias Roubadas | Mwanabibi Sikao

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Tradução de “Stolen Memories” (Omenana, Issue 26, July 2023)

Traduzido por:

Lucas Durães Fernandes

Julia Conde Semeler

Ele me colocou nessa prisão empoeirada, escaldante, porque acha que pode me ludibriar. Nem mesmo me concedeu a dignidade de um tapete para me proteger da areia. Os jovens são sempre muito mais confiantes do que suas habilidades permitem. E claro, ser um homem arrogante também não o ajuda em nada. Como é que dizem? A juventude é desperdiçada nos jovens.

Por aqui, nada é mais reverenciado do que a juventude. Muitas velhas acusadas de bruxaria são jogadas na prisão, como eu, ou simplesmente mortas. Ter a audácia de enterrar os seus iguais é considerado um grande pecado, mas esse é apenas um dos meus. Pecado. Uma palavra tão subjetiva. O pecado de um homem é o deleite de outro. Prefiro chamá-los de atributos especiais. Ferramentas para a sobrevivência. Dádivas.

Demorei tanto tempo para aprimorar meus dons e o fiz tão bem que quase não me lembro de uma época em que eu não era assim. As pessoas não me deixam esquecer quem sou. Em vez de aprenderem meu nome, me chamam de A Cega. Aqueles que me deram nome ao nascer o levaram quando me rejeitaram.

Às vezes me pergunto se o sacrifício valeu a pena. Se, no lugar de uma criança que consideravam imperfeita, meus pais tenham ganhado alguém mais aceitável. Tento não persistir nesses pensamentos. Afinal, alguns podem me considerar sortuda. O destino de outras crianças julgadas inadequadas é muito pior. Levadas embora após o nascimento, são cobertas em panos para protegê-las de olhares alheios. Abandonadas no mato, ou para definhar por falta de comida ou para elas mesmas se tornarem alimento, porque o kabumba, o oleiro que nos molda antes do nascimento, negligenciou conceder membros suficientes à criança ou foi zeloso em excesso e deu dentes a ela cedo demais.

Existir apesar da ordem natural das coisas é outro pecado. Mulheres tiveram seus úteros removidos porque o kabumba simplesmente não conseguiu encaixar o bebê no molde.

Suponho que eu era grande demais para que me contrabandeassem. Quando a escuridão chegou, eu era uma garota na puberdade aguardando seu noivado. Idade suficiente para ser útil à minha mãe.

Perdi a visão ao longo de muitas luas. Minha vista foi ficando turva, desaparecendo e, então, tornou-se inexistente. Minha mãe se cansou de me ver tropeçando pela cabana dela. Ela me levou a um curandeiro que aconselhou meus pais a me levarem ao malemde de nosso mzimu – o venerado santuário de nossos ancestrais. O mzimu, ele disse, saberia o que fazer comigo. Bem, descobri que os ancestrais também estavam desorientados. Permaneci no santuário por vários dias, distinguindo a passagem  do tempo pelo calor do sol na minha pele. Relutante e incapaz de explorar meus arredores, entrei em depressão profunda. Oscilando entre o sono e a consciência, fraca pela falta de comida e água, acordei uma noite sentindo o focinho molhado de um duiker curioso. Tremendo de desespero, o alcancei, envolvi minhas mãos em seu pescoço quente e o quebrei. Não sei de onde veio a força. Podem dizer que foi o mzimu querendo que eu vivesse. Se foi, ainda preciso descobrir seu propósito pra mim.

#

Minha vontade de sobreviver ao sacrifício dos meus pais foi outro dos meus pecados.

Vivi no mato e aprendi a sentir o silêncio ao meu redor, a coexistir com as árvores, os animais e o clima em constante mudança. Eu rastejava pelo chão apanhando gravetos e pedras, fazendo ferramentas e fogo para cozinhar, me aquecer e me proteger de predadores. Andava com meus braços estendidos, tateando por cavernas para me abrigar quando chovia. Usando o som e os cheiros, comecei caçando pequenos roedores; a pouca carne não saciava minha fome, levando-me a ter como alvo animais maiores. Quanto maior o animal, mais couro para vestir. Então, fiquei hábil em separar a carne da pele. Acima de tudo, permaneci escondida, ciente de que minha sobrevivência dependia da invisibilidade. Três ciclos de chuva passaram antes que eu começasse a fazer mais do que sentir. Comecei a ver.

– Ver? – você pergunta. – Se você começou a enxergar, por que não voltou para o seu povo?

Você é jovem. Tem muito o que aprender. Há mais de uma maneira de enxergar. A escuridão me permitiu ver muito mais do que você jamais verá.

Matei aquele primeiro duiker rápido demais para perceber a mudança em mim. Na verdade, mesmo se eu tivesse notado, não seria capaz de descrever o que eu estava vivenciando.

Conforme as estações passavam e eu me tornava uma caçadora mais experiente, comecei a ver centelhas. Eu perfurava um javali com a vara afiada que usava como lança e, ao colocar minha mão nele, pontos de luz apareciam atrás das minhas pálpebras. Então, um calor começava na palma da minha mão e subia pelas veias do meu braço até consumir o corpo inteiro. Era como as faíscas que você vê quando fecha os olhos depois de olhar para o sol, mas eram quentes. Eu via folhas de grama e raízes turvas arrancadas de seu lugar na terra. Às vezes, eu via os membros de outros animais zunindo ao passar. Um javali não tem uma vida muito emocionante, então resolvi procurar memórias mais interessantes para assistir.

A essa altura, eu conseguia distinguir a forma e o tamanho de um animal pelo espaço que ocupava na atmosfera. Eu ouvia não apenas seus gritos como também seus cascos roçando no chão. Eu era capaz de rastreá-los em silêncio e também sabia quais folhas esfregar sobre minha pele para me tornar indetectável. Aprendi a evitar matar rápido demais os animais para que pudesse saborear suas memórias. Após inúmeras expedições de caça ao longo de muitas luas, as visões tornaram-se mais consistentes. Onde antes eu via lampejos, agora visualizava momentos inteiros.

Eu tinha minhas preferências, é claro. Os gnus demonstraram-se bem gratificantes. Eles viajavam por toda parte, me mostrando muito mais do que um pequeno javali aos trotes jamais poderia. Os macacos sempre estavam envolvidos em algum tipo de drama familiar. Mas o mais satisfatório foi o elefante, com visões tão vívidas e profundas. A morte de um elefante me deixava vazia. Uma experiência espiritual que me levou a procurar mais deles para matar.

Era inevitável. Eu precisava saber como seria a sensação. Você não faria o mesmo? Quero dizer, você pode falar que fui vencida pela curiosidade, mas foi mais do que apenas isso. Foi o intrínseco desejo humano de ver o que eu estava perdendo.

Comecei com presas fáceis. Garotinhas cantarolando enquanto apanhavam lenha um pouquinho longe demais da aldeia. Caçadores inexperientes demorando tanto para perseguir seus alvos que eles mesmos entravam na mira. Caçar pessoas é tão mais fácil do que caçar animais selvagens. As pessoas acreditam que têm o direito de existir. Geralmente, elas não gastam muito do seu tempo se preocupando com possíveis perigos.

Você agarra o peito horrorizado, mas eu sei que está mais do que só um pouquinho intrigado. Em minha defesa, eu ainda estava aprendendo. Como disse, eu estava aperfeiçoando meus dons. Naquela época, acreditava que as lembranças só apareceriam no instante da morte, então não tinha outra escolha. Eu precisava matá-los. Vou poupá-lo dos detalhes sangrentos, mas vou sim dizer que não havia nada mais excitante do que tocar a pulsação forte e frenética na base do pescoço, senti-la desacelerar e parar enquanto testemunhava o clímax de suas memórias. Descobri que se eu posicionasse meus dedos no lugar certo, meu pulso refletiria o outro, intensificando o prazer.

Chorei com as visões de como minha vida seria se não tivessem tomado ela de mim. Vez ou outra pensei ter captado um vislumbre da minha mãe. A ferocidade da minha raiva ao vê-la me assustava. Queria evocar as lembranças novamente, mas ao mesmo tempo não queria vê-la nunca mais, então decidi fugir para o mais longe possível da malende, distante daqueles que decidiram que eu não era digna de sua família.

No começo, roubar de uma pessoa me saciava. Eu não precisava caçar memórias mais do que uma vez a cada ciclo lunar. As lembranças também me esgotavam de energia, então caçava cada vez menos por comida. Já não precisava das visões dos animais e especializei a matança. Comida versus memórias. Como eu disse: pecado não, sobrevivência. Enxergar me fez sentir completa de novo. Eu precisava disso para continuar.

Sei que fico repetindo. Não quero que pense que sou etarista, mas as memórias dos jovens são insatisfatórias por algum motivo. Particularmente aqueles ingênuos, fáceis de capturar. Sempre tem alguma coisa faltando nelas, um certo nível de profundidade que só o tempo pode proporcionar – como a crescente potência de uma bebida maturada lentamente. Aquela carência por profundidade me venceu. Ela me tornou imprudente. Eu precisava de mais e mais memórias ou memórias com mais substância. Para conseguir isso, tive que continuar me movendo. Muitas vidas perdidas em uma única comunidade significava o risco de deixar de ser caçadora e me tornar a caça. Passei muitas noites me escondendo de multidões furiosas.  Elas não compreendiam o que estavam caçando, e isso, afinal, era o que me salvava.

Meu estilo de vida se tornou insustentável. O terreno de caça estava escasso e minha vitalidade não era a mesma de antes. Decidi me ater a uma única aldeia e focar naqueles que já estavam próximos da morte. A vantagem óbvia é que eles seriam tanto velhos quanto fracos. Então, pela primeira vez em muito tempo, removi o véu da invisibilidade e me revelei aos outros.

No final, foi fácil. Pessoas são falíveis. Muitas sequer imaginariam que alguém como eu seria capaz de ferir, quem dirá representar alguma ameaça. Espreitei um grupo de mulheres que sempre apanhava lenha nas proximidades. Esperei até que se sentassem em uma área e tropecei em direção a elas, me certificando de parecer perdida e confusa. Depois de muita discussão, elas se ofereceram para me levar ao mung’anga local.

Alguém como você poderia se ofender de ser levado direto a um xamã. Você provavelmente esperaria uma recepção calorosa em uma casa de família. Mas a sua vida é diferente da minha. Não presumo ter direito à mínima bondade humana. De qualquer forma, fazia sentido. Se estivesse perdida, a melhor pessoa a me indicar como voltar para onde eu pertencia seria certamente um mung’anga. Eu ainda não sabia, mas aquele único ato foi a minha salvação. Ele me trouxe a esse exato momento.

Fui honesta com o mung’anga. Bom, tão honesta quanto era seguro ser. Contei como meus pais me expulsaram de casa, me abandonando para vagar pela selva até que as aldeãs me encontraram. Era uma história plausível. Crível. Mas havia alguma coisa implícita no seu convite para que eu permanecesse lá, como sua aprendiz. Ele podia sentir minhas habilidades. No fim das contas, ele as subestimou, mas estou me adiantando muito.

Voltar à sociedade foi uma grande mudança. Eu havia passado muitas colheitas sozinha. Naturalmente, queria me distanciar e me esconder dos olhares e dos murmúrios.

Meu trabalho me manteve ocupada. Na moita, entre erros e acertos, misturei poções de saúde e para vitalidade na caça. Isso porque eu já conhecia muitas plantas medicinais, árvores e ossos, mas o mung’anga me ensinou como combiná-las para alcançar seu potencial máximo. Aprendi outra coisa também. Aprendi que eu não precisava matar para enxergar as memórias.

Quando cheguei na vila e passei a viver entre tantas pessoas, meus sentidos se aguçaram. Todas as memórias ao meu redor faziam com que, mesmo sem tocar em ninguém, minha mente fervilhasse de visões. Talvez eu tivesse a capacidade de roubar memórias sem matar desde sempre, mas nunca saberia porque meu principal objetivo na mata era capturar minhas presas antes que pudessem escapar. Agora eu via memórias tal qual eu ouvia vozes e não conseguia filtrá-las. Era exaustivo demais para ser prazeroso. Comecei a perder a esperança de algum dia alcançar novamente a clareza daquela primeira memória roubada.

Abandonei a necessidade de focar nos idosos, em vez disso, optei por fisgar memórias enquanto assistia as consultas do mung’anga. Eu me agachava no canto de sua cabana e escutava enquanto o paciente contava sua história. Descobri que, se mantivesse minha respiração estável e concentrada, eu poderia alcançar visões intensas.

Com o passar das estações, construí uma biblioteca de memórias considerável, com a qual podia cruzar informações a fim de sanar as doenças de nossos pacientes. Eu podia, por exemplo, usar as memórias de uma mulher para deduzir que seu desconforto não era causado por algum feitiço misterioso, mas pelo fato de que seu marido rebelde, que também veio para uma consulta, estava plantando suas sementes em muitos campos diferentes. É claro, mantive muitas dessas coisas pra mim mesma porque não serviam ao meu mestre. No fim das contas, ele era um adivinho, não um curandeiro. Se ele solucionasse todos os problemas que entravam por sua porta, logo acabaria desempregado. E de qualquer forma, o povo gostava do mistério dos feitiços e encantos. Não estou dizendo que essas coisas não existem. O que estou dizendo é que adivinhação e cura são coisas diferentes e, na minha época, a regulamentação era clara. Mas estou divagando.

Agora, onde eu estava?

O mung’anga sabia que eu tinha habilidades, mas nem mesmo ele podia imaginar o tamanho da minha força porque, convenhamos, eu não enxergo. Pelo menos não de maneira natural. Ele acreditava, com razão, que a sensibilidade aguçada dos meus outros sentidos melhorava minha intuição. Ele pensava que, como todo bom mung’anga, eu estava montando um quebra-cabeças, atenta à voz do paciente e usando dúvidas ou preocupações para compreender seus pensamentos. Ele começou a pedir minha opinião em casos particularmente difíceis. No início, ele me perguntava para poder me ensinar, e depois, para considerar meu ponto de vista.

Ouso dizer que a clínica era muito melhor com a nossa parceria. Ele, sendo homem, não via como uma parceria. Ele me escondia atrás de uma cortina em sua cabana e me fazia diagnosticar seus pacientes enquanto roubava todo o crédito.

Ele sabia muito bem que se as pessoas descobrissem o quão útil eu era pra ele, viriam me procurar.  Sendo honesta, eu era muito mais intrigante do que ele. Eu não precisava usar bugigangas especiais ou proferir encantamentos indecifráveis para que eles acreditassem no meu poder.

Duas coisas combinadas aumentaram o nível da minha ambição. A primeira foi egoísta. Bem, pra ser sincera, ambas foram, mas a primeira foi um pouco mais mesquinha. Estava farta do mung’anga me mantendo afastada dos pacientes. Sua necessidade de reconhecimento me atrapalhava. Eu ansiava por tocar os pacientes. Sentir a respiração contra meus dedos enquanto eu traçava o contorno de suas faces. Sentir o pulso de uma pessoa ainda era o melhor método para ver memórias, mas o mung’anga estava no meu caminho. Ele se tornou um estorvo. Usei todas as minhas forças para não gritar para que ele saísse. A segunda é a razão pela qual estou na prisão.

O mung’anga era um homem reverenciado. Pessoas vinham de todos os lugares para buscar seus serviços. Mas, de longe, era gente comum que não tinha muito a oferecer em troca de seu trabalho. Sua verdadeira renda provinha dos pacientes abastados – caçadores e pescadores bem sucedidos, viúvas ricas e chefes de tribos.

Esse último grupo, os líderes dos homens, eram os mais vulneráveis e buscavam os tratamentos mais raros. Também exigiam sigilo máximo e pagavam o que fosse necessário para obtê-lo. Não podiam ser vistos visitando um mung’anga, então o mung’anga ia até eles. Ele partia sob o anonimato da escuridão e voltava na alvorada, sem mencionar nada sobre os acontecimentos da noite. Eu era paciente, aguardava meu momento. Ele logo perceberia que precisava de mim para ser mais eficaz.

Veja só, ser um mung’anga é uma prática competitiva. Quanto mais você ascende, mais vulnerável se torna. A qualquer momento, algum jovem pode aparecer e te desbancar. Isso se você tiver sorte. Se não, pode acabar morto.

Quando você se torna o adivinho escolhido de um chefe, os riscos aumentam consideravelmente. Não há outra alternativa além de ser bem sucedido. Por exemplo, se você der a um chefe um amuleto para derrotar um inimigo e ele falhar, então ou você ou ele morrem. Só existem dois motivos para um encanto não funcionar: uma falha sua ou a incapacidade do paciente de seguir instruções – e você não quer falar para um chefe que ele está errado. Bem, poderia, mas somente se tivesse construído certo nível de confiança. Mas meu mestre não conseguia identificar as verdadeiras necessidades de um paciente. Verdade seja dita, ele era completamente inadequado para servir um líder poderoso.

Quando finalmente me pediu para acompanhá-lo na visita ao seu paciente mais importante, foi porque estava com a faca no pescoço.

Você deve estar exausto das minhas digressões, mas são essenciais para contar toda a história. Por favor, permita-me mais uma enquanto eu explico o complicado cenário político no qual vivemos.

O homem que contratou meu mestre não é o Chefe, mas aspira a ser. Esse foi o primeiro erro do meu mentor. Você não pode se alinhar a um alpinista social imprevisível, sedento por poder. Não há propósito em comum. Um homem que deseja tomar o poder a qualquer custo sempre precisará de muito mais do que você pode oferecer. Esse homem, o mesmo que decidiu me jogar na prisão, é um grande caçador. Seu nome é Kayambila, e ele se tornou tão habilidoso na caça que já não segura uma lança em suas próprias mãos. Ao invés disso, ele é um comandante de caçadores que construiu alianças com muitas nações e acumulou uma grande fortuna. Ele não apenas conquistou o respeito de seus iguais como também de pessoas em posições muito mais elevadas que a dele. Apesar disso tudo, continua sendo um mero soldado de infantaria no exército da Mwene. Bem, ele é muito mais do que um soldado raso. Como general, conduziu o exército a famosas vitórias, permitindo que ela conquistasse muitas das aldeias ao nosso redor. Mas, é claro, enquanto ele não for o Chefe, se considera apenas um mero soldado. O fato de a verdadeira chefe, a Mwene, também ser sua irmã, apenas coloca mais sal na ferida. 

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A frustração de Kayambila cresceu junto com o reino da Mwene. Ele não consegue entender por que uma mulher, que não empunha uma lança, deveria ou mesmo poderia liderar uma nação.

Meu mestre estava em uma encruzilhada. Fornecer a Kayambila amuletos e remédios para vencer batalhas já não era suficiente. Agora, ele precisava convencê-lo de que era o mung’anga certo para capacitá-lo a destronar sua irmã. Esse foi o motivo para finalmente decidir que era hora de me levar junto com ele.

Um dos benefícios de estar submersa na escuridão é que eu não me sinto intimidada por aqueles à minha volta. Não perdi de vista meu objetivo quando fui levada para dentro da cabana de Kayambila. Tinha feito minha lição de casa. Eu conhecia a política.Seus soldados e conselheiros nos visitaram e eu aprendi muito observando suas memórias. Não preciso mencionar mas, a essa altura, eu também conseguia acessar a mente do meu mestre. A demora do mung’anga em me trazer não foi um empecilho.

Enquanto ele ouvia meu mestre entoar seus encantos incessantemente, invadi as memórias de Kayambila.

Normalmente, quando roubava memórias, eu era apenas uma mera espectadora, mas, com Kayambila, era como se ele estivesse me contando a história. Ele era a pessoa mais poderosa cujas memórias eu já havia roubado, precisei controlar minhas mãos trêmulas. Do meu canto na cabana, eu o via derrotando exércitos em combate, via debates com figurões importantes da nossa região, via discussões com sua irmã. Quando finalmente vi o que eu precisava, aguardei.

Por fim, meu mestre terminou suas poções, pós, encantos e amuletos. Durante o silêncio de reverência que costuma suceder tais procedimentos, falei

– Vai precisar de armas para derrotar sua irmã – eu disse – Você só vai consegui-las dos Zelo – os fantasmas do Norte – e eles só vão entregá-las se você oferecer prisioneiros de guerra. Precisa dar escravos a eles.

Tenho que admitir. Não foi algo particularmente perspicaz de se dizer. Todos conheciam a insaciável necessidade dos Zelo por escravizados, mas eu estava apostando no elemento surpresa. Me tornei invisível e todos esqueceram que eu estava lá, o que potencializou a gravidade das minhas palavras quando finalmente abri a boca, além do fato de que a maioria das pessoas, incluindo meu mestre, não ousariam dizer a Kayambila o que pensavam.

Quando tive certeza de que todos me ouviam, continuei – Você não vai vencer essa guerra no campo de batalha – disse – Será necessário tempo e estratégia.

– Continue – ele disse depois de um tempo, mas permaneci em silêncio. Hesitei por tempo suficiente antes de continuar. — Com todo o respeito – eu disse – estratégia demanda discrição.

Não precisei falar mais nada. Kayambila compreendeu a necessidade de haver um único homem no comando. Não sei o que aconteceu com meu mestre.

#

Ao longo das muitas estações que passaram, Kayambila e eu enfrentamos muitos desafios juntos, dentro e fora do campo de batalha. Ele sabia que a proximidade melhorava minhas habilidades de vidente, então me levava consigo para todos os lugares. Logo, se tornou dependente de mim e não se importava mais em prestar atenção especial a amigos ou inimigos. Ele sabia que eu traduziria suas palavras. Era quase como se preferisse nossos momentos silenciosos, meus dedos em seus pulsos ou cingindo sua testa.

Com o tempo, me tornei tão infame quanto ele. Embora não entendessem exatamente o que eu fazia, esperavam me ver onde quer que ele estivesse. O único ponto negativo foi que, por causa do tempo que passávamos juntos, comecei a me enxergar em suas memórias. Ver como fui de pele macia para um rosto enrugado, de uma cabeça cheia de cabelos grossos cacheados para fios grisalhos e ralos. Tinha vislumbres dele através das memórias de outros e, apesar de envelhecer com o tempo, ele não definhou como eu, ao invés disso, ganhou uma postura mais imponente.

Mas, como eu disse, não dá para formar uma aliança com um homem como Kayambila. A tomada do poder se tornou um processo lento demais para ele. Eu não podia dar mais desculpas. Ele queria saber porque sua irmã ainda era a Mwene.

Me cansei de suas reclamações constantes. Assistir suas memórias se tornou entediante. Comecei a acreditar que sua irmã talvez fosse melhor. Ela se cercava de conselheiros poderosos e, melhor do que isso, tinha o povo ao seu lado. Eles sabiam que não seriam vendidos aos Zelo, com quem ela se recusava a fazer negócios. Dada a chance, Kayambila ficaria feliz em trabalhar com os Zelo e todos sabiam disso.

Eu estava ganhando tempo, eu disse, para o seu próprio bem. Se tentasse tomar o poder agora, o povo se levantaria contra ele. Disse que a confiança tranquila dela falava mais alto que sua angústia desesperada; antes que ele sequer fosse considerado, era mais provável que seu filho se tornasse chefe. E, só para reforçar meu argumento, disse que as memórias da Mwene tinham muito mais profundidade do que as dele jamais teriam. Isso bastou. Ele me jogou nessa prisão e me largou aqui como uma criminosa comum. Poderia ter me matado, mas sou valiosa demais.

Seguindo o conselho de um mung’anga, ele decidiu sacrificar seu filho, Sitondo, ao mzimu para evitar uma reivindicação ao trono. Ele acha que isso o tornará mais poderoso, mas não vai.

Escute só, eles correndo por aí em busca dele.

Kayambila esqueceu que estratégia demanda discrição. Minha percepção é muito mais sofisticada do que a dele. Na verdade, meus dons superaram até mesmo minhas próprias expectativas. Eu sabia que ele me trancaria aqui bem antes que esse pensamento sequer fosse um lampejo em sua mente.

Já havia sussurrado a Sitondo. Ele está a caminho da corte real em busca de refúgio. Dei-lhe instruções rigorosas sobre o que deve dizer e, quando ele falar, a Mwene não terá outra opção a não ser me mandar socorro. Então me livrarei dessa irritação e tomarei meu lugar de direito ao lado da Mwene. Mal posso esperar para finalmente poder trabalhar com outra mulher que compreende o que é necessário para permanecer no topo. Alguém com visão de verdade.

FIM


Mwanabibi Sikamo é uma contadora de histórias e produtora audiovisual que explora vidas africanas reais e imaginárias tanto do passado quanto do presente. A ficção dela é repleta de tradição mágica da sabedoria de povos indígenas. Ela foi publicada pela Olongo Africa, AFREADA e Iskanchi Magazine. Ela atualmente escreve seu primeiro romance.

Os Desconhecidos | Nana Afadua Ofori-Atta

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Tradução de “The Strange Folk” (Omenana, Issue 25, March 2023)

Traduzido por/Translated by:

Lucas Brites Leque

Kwesida

Hoje é domingo. Os domingos são para o passado.

Não é para ficar lembrando das coisas que já se foram, mas para recordarmos da fundação da minha cidade natal, dos sacerdotes que guiaram meus ancestrais e das criaturas que espreitam nas profundezas do oceano que se avizinha à cidade.

Os domingos existem para falar mais uma vez dos laços entre a Mãe Oceano e a cidade. Os domingos existem para fortalecer mentiras.

Ebo está falando sobre a ilha de Afia de novo. Ele está avisando meu irmão para ficar fora disso. Meu tio é o único na cidade que fala sobre a ilha flutuante desse jeito. Todas as outras pessoas falam dos servos da Mãe Oceano que caminham pela ilha com reverência e guardam um tesouro. Nós os chamamos de os Desconhecidos.

– Águas turbulentas que podem destruir qualquer navio. – Ebo diz em voz baixa. Ele faz o som das águas e meu irmão deixa escapar uma risadinha. – É a última linha de defesa. Você vai ficar longe de lá, não é?

Meu irmão concorda energicamente com a cabeça. Fiifi parece um bobo mexendo a cabeça daquele jeito.

– A última linha de defesa contra o que exatamente? – Pergunto, mesmo já sabendo que Ebo não vai responder. Eu já perguntei isso antes.

– O outro lado – Fififi diz – Todos aqueles que morrem no mar acabam parando lá.

Ebo levanta a sobrancelha e pergunta:

– E onde é que você ouviu isso?

Quando meu irmão explica que foi nosso pai quem contou a ele, Ebo dá uma risada.

– Pra um pescador, é de impressionar o pouco que seu pai conhece dos mares.

Desapontado, já que Ebo não concordou com sua resposta, Fiifi pega sua coleção de conchas. Ele costuma fazer isso quando não sabe muito bem como reagir em algumas situações. É como um cobertor de estimação que já tomou conta de uma parede inteira no seu quarto.

– São os Desconhecidos – deixo escapar. Os lábios do meu tio se comprimem formando uma linha fina.

– Não, também não são eles. – diz.

– E como você sabe disso? – pergunto, cansado de suas histórias, de suas mentiras. Não existe espírito do oceano, a ilha de Afia não está se movendo ao redor da costa. É uma ilusão de ótica. O que quero realmente entender é o porquê da ilha incomodar tanto o Ebo. Estou cansado de ser feito de trouxa.

– Ninguém nunca viu eles – digo a ele e fico pensando… mas as pessoas dizem que eles assumem formas de animais, principalmente de tartarugas, e por isso o ninho deles não era incomodado.

Ebo tem um olhar estranho. De repente, ele aparenta ter quase sessenta anos, ainda que na verdade ele tenha quarenta. Sua pele negra está enrugada, como se ele tivesse ficado por muito tempo dentro da água.

– As coisas daquela ilha e os Desconhecidos são duas entidades diferentes. As coisas daquela ilha corromperam-se até tornarem-se algo anormal, abominável. Eles só servem a si mesmos. – A voz de meu tio assume um tom áspero.

– Monstros? – Fiifi pergunta com a voz tremendo.

– Eles não podem te pegar – diz Ebo colocando um braço em volta do meu irmão – não comigo por perto.

Mordo meu lábio de nervoso, levanto do sofá e saio. Posso ouvir o oceano, mas está escuro demais para ver onde a ilha está. Será que tinham mesmo monstros vagando por aquelas florestas? Odeio como Ebo consegue fazer isso. Ele consegue fazer eu me interessar pelas suas histórias mesmo que eu tente com todas as minhas forças deixar elas na minha infância.

#

Benada

Hoje é terça-feira. As terças são para a Mãe Oceano.

Sem nadar. Sem pescar. Muitos evitam a praia nesse dia. Eu não sou uma dessas pessoas. Fiifi está ao meu lado na areia quente. Está tentando cavar um buraco com os pés. Falaram várias vezes para irmos para casa, apesar de tecnicamente não estarmos quebrando o tabu.

As terças provocam muito medo na minha cidade, chega a ser até perturbador às vezes. Minha universidade também fica em uma cidade costeira, mas não chega a parar tudo quando é o terceiro dia da semana. Na minha cidade, as terças servem para manter as coisas como estão.

O sol está alto no céu, as nuvens mais fofas que já vi circundam-no. A água é azul-escura, cintilando ao quebrar das ondas na praia. Observo as coisas ao meu redor, as permitidas na praia já que é dia do banquete da Mãe Oceano. Os pescadores cantam enquanto amarram suas redes. É o modo deles a honrarem. Vejo meu pai e Ebo entre eles.

Meus olhos acompanham a ilha de Afia, parece estar mais perto da margem do que estava na Dwowda. Fico pensando em como são esses monstros. Ebo diz que eles têm as partes do corpo em lugares diferentes, bocas nas axilas, olhos nas bocas.

– Tá pensando em ir atrás do tesouro? – Meu irmão me pergunta. Viro-me para olhá-lo. – Se eu tivesse o tesouro, adivinha só o que eu ia fazer – diz ele.

– Iria comprar um monte de caramelo? – pergunto.

Um sorriso brilhante abre em seu rosto e dou risada. É tão fácil agradar uma criança de oito anos.

– Posso te contar um segredo? – diz quase num sussurro enquanto brinca com a camiseta, afundando mais um pouco o pé na areia.

– Você pode me contar qualquer coisa.

– Eles querem se livrar do tio Ebo. Escutei eles falando sobre isso. Mamãe diz que ele está amaldiçoado.

Suspiro. Essa merda de novo. O que aconteceu já tem quase uma década. Não era culpa do Ebo as pessoas terem acompanhado seu ato tolo de quebrar o tabu. Não era culpa dele a Mão Oceano, por algum motivo, não o ter levado. Eles tem que parar de jogar toda a culpa nele quando as coisas não dão certo na nossa família.

– O tio não está amaldiçoado.

– Mas a mamãe disse que…

– Vai ficar tudo bem. Ele não vai a lugar nenhum, ele é muito teimoso pra isso acontecer.

Parecendo satisfeito com a ideia de que o tio não seria mais expulso, Fiifi pergunta o que eu faria com o tesouro. Quero pensar que faria coisas bem práticas com os sacos de dinheiro: comprar ações, investir em empresas, qualquer coisa que me trouxesse mais dinheiro.

– Comprar um navio – estico meus braços como se segurasse o timão de um navio e faço minha melhor imitação de pirata. – Saquear as ilhas mais próximas, procurar por ouro – Abaixo minha cabeça na altura do ouvido do meu irmão – e me encontrar com algumas mulheres.

Ele dá uma gargalhada.

– A gente pode navegar pelo mundo, ir pra todos os lugares da minha enciclopédia. Vamos ser os irmãos piratas, pensa só nas aventuras que a gente podia ter. – Fiifi diz enquanto dá pulinhos, balançando o braço como se estivesse em uma luta de espadas. Ele me encara.

– Daí você não vai precisar voltar pra faculdade.

– Claro…

– Você não acha?

– Acho, mas eu preciso voltar para a escola. Vou sempre voltar pra passar um tempo com você. Seremos sempre os irmãos piratas quando eu estiver por aqui.

Meu irmão me olha como se estivesse considerando o que fazer, aceitar minha resposta ou fazer birra.

– Tá bom então, quando você tá aqui a gente vai nadar e comer caramelos até nossos dentes ficarem podres.

– E pirata de verdade tem dente bom? – Fiifi balança a cabeça rindo e eu deixo escapar uma risada também.

Decidimos construir um castelo de areia antes que a maré suba. Já que não podemos pegar água do mar, compramos várias bolsas de água filtrada de um dos poucos quiosques abertos. Usamos várias bolsas para criar um fosso e duas torres. O castelo tem até um portão feito com alguns gravetos. É uma pena que vai desaparecer em algumas horas. Tiramos uma foto nossa do lado do castelo.

– Olha! – exclama meu irmão apontando para alguma coisa perto da margem. Uma concha grande e branca enterrada pela metade na areia. – não tenho nada parecido com isso. Bem capaz de ocupar metade de uma prateleira. Vou lá pegar.

– Não vai fazer coisa nenhuma – minha voz sai mais áspera do que eu pretendia – com sorte, ainda vai estar aqui amanhã.

– Mas e se não estiver?

– Mais sorte da próxima vez – respondo dando de ombros.

–  A água não está chegando lá ainda. Não vou estar quebrando nenhuma regra. – Fiifi choraminga.

– Está sim. Vamos pra casa.

Fiifi me ignora. Ele corre em direção à concha. Sinto um arrepio na espinha, uma dor no peito. Em breve, não terei meu irmão. Eu grito para que volte enquanto corro atrás dele. Fiifi pega a concha, vira-a em suas mãos e ri de alegria. Eu o encaro em pânico. Fiifi está com a água na altura dos tornozelos.

Seu riso logo dá lugar a gritos por ajuda enquanto as águas, até então calmas, de repente agitam-se violentamente, arrebentando contra a margem e cuspindo pedaços de madeira na praia. Assisto às ondas engolirem por completo o corpo do meu irmão. Trovões ressoam no céu e raios atingem a areia da praia como se fossem esculturas sendo formadas. As canções de reverência dos pescadores são quase inaudíveis. Minha boca está cheia de bile e a chuva está caindo forte.

Agora meu irmão pertence ao oceano.

Fico encarando a concha ali na areia. Os pescadores correm para algum lugar seguro fugindo das árvores que caem. Meu tio e meu pai estão tentando me afastar para longe. A concha debocha de mim. Um irmão melhor tentaria salvar Fiifi, mas esse não sou eu. Sou só um covarde.

– Kwame – Ebo põe a mão em meus ombros – o que você tá fazendo aqui?

– Fiifi… Fiifi…

– Não me diga que ele está… ai meus deuses! – Os olhos de Ebo se apertam de dor. – vamos, temos que tirar você daqui. Fiifi vai ficar bem. Eu prometo.

Meu pai está gritando comigo por não ter cuidado do meu irmão. Ele não acha que eu sei disso? Fiifi está morto e a culpa é toda minha. Fui eu quem o trouxe para a praia. Algo dentro de mim se quebra. Talvez meu irmão esteja morto, mas o oceano não pode ficar com o corpo dele. Isso eu não vou permitir. Fiifi merece um funeral de verdade e uma lápide para eu poder visitá-lo, um lugar onde eu possa contar a ele das nossas aventuras de irmãos piratas. Eu me solto dos braços do meu tio e mergulho no oceano feroz.

Não é tão escuro assim debaixo do mar quanto é visto lá de cima. Parece ser iluminado por centenas de lâmpadas. Levo um tempo até ver Fiifi de relance.  Olhos fechados, mãos na cintura e cercado por tartarugas.

Tartarugas? Os Desconhecidos?

  Eu nado para mais perto, tentando não esbarrar em nenhuma tartaruga. Pego meu irmão em meus braços e rumo em direção à superfície. Estou ficando sem ar mais rápido do que o esperado.

Escuto um zunido. Tentáculos surgem do fundo do mar, puxando e empurrando até que conseguem tirar Fiifi das minhas mãos. Outro tentáculo envolve meu pescoço e aperta. É grudento e pegajoso, está a ponto de me estrangular. O silêncio recai sobre tudo, até mesmo os cardumes de peixes que passavam apressados parecem agora parar por um momento. E então, o fundo do mar abre os olhos.

Dezesseis. Havia dezesseis olhos, todos olhando para mim. Sua voz me lembra o som de uma orquestra. Está falando em Fante.

– Ele pertence a mim – o fundo do mar diz – assim como você, mas por agora você pode ir.

O que isso quer dizer?

O tentáculo solta meu pescoço e nado em direção ao meu irmão. Outro tentáculo me impede. Estou quase sem ar. Mal consigo manter meus olhos abertos. É como se minha garganta estivesse inchando e meu peito afundando.

Alguma coisa está nadando na minha direção. Algo que parece ser humano. Tem nadadeiras no lugar de pés e barbatanas por todo o braço. Devo estar imaginando coisas por causa da falta de ar. A coisa brilha numa cor amarelo neon. Minha consciência está se esvaindo. Não pude salvar meu irmão. Vamos os dois morrer nas garras da Mãe Oceano.

Por que a criatura tem o rosto do meu tio?

#

As pessoas da cidade acreditam que há duas opções disponíveis antes de você morrer: acaba se tornando um antepassado ou volta para a casa da sua família para viver mais. Não é o que acontece comigo. Vejo os olhos da Mãe Oceano. Vejo massas disformes de carne com dentes e cabelos. Massas de carne com vários membros, todos em lugares trocados, arrastando-se pela areia da praia, atraindo os marinheiros com vozes sensuais. Vejo a ilha de Afia do jeito que ela realmente é.

Quando abro meus olhos, estou sentindo tanta dor como jamais tinha sentido. Meu pai está olhando para mim, um sorriso irônico mancha seu rosto. Tento dizer algo, mas sinto dor na garganta. Ao meu lado está Fiifi. É difícil olhar para ele, sua pele sem cor, seus lábios rachados. Ele parece estar esvaziado.

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Eu consegui? Eu consegui.

– Ele tá… tá bem? – Me esforço para dizer as palavras.

– Não. Ainda há um pouco de vida, mas logo ele vai nos deixar – diz meu pai.

– Ignore ele – Ebo diz, lançando um olhar para meu pai. Suas roupas estão encharcadas, mas há um tom de humor na sua voz como se duas pessoas não tivessem quase sido mortas.

– Foi muito valente o que você fez. Sempre soube que esse tabu era baboseira.

– Baboseira? – vocifera meu pai – Tem um porquê das coisas terem uma ordem certa. Ele trouxe a maldição de volta.

– Ah, cale a boca! Seria de se pensar que você estaria feliz por seus filhos não estarem mortos.

– Seria melhor se eles estivessem mortos. O único motivo dele ter achado que tudo isso fazia sentido foi por sua causa. Nunca deveria ter deixado você ficar com a gente. Seu inútil.

– Pode até colocar a culpa em mim se isso te ajuda a lidar com a situação. Mas inútil? Você estaria no fundo do mar se não fosse por mim – Nunca tinha visto meu tio revidar. Ele sempre desviava dos insultos do irmão dele com uma piada ou um sorriso. Isso me incomoda.

– Ou já esqueceu por quem foi que eu quebrei o tabu?

Os lábios do meu pai se contraem.

– Isso já faz muito tempo

Olho para eles. Ebo estala os dedos. Como eu nunca tinha ouvido essa parte da história?

O mar está calmo novamente e entre nós só o silêncio. Acho que todos acreditamos que Fiifi está morto. Deve ser por isso que nem se preocuparam em levá-lo a um hospital. Quero acreditar que meu irmão vai acordar. Milagres assim sempre acontecem nas histórias do Ebo.

Então, Fiifi acorda. Mas quando isso acontece, não acho que seja um milagre, acho que estou alucinando. Seus olhos estão abertos, mas ele olha para o nada. Olhos como um vidro. Meu irmão parece extremamente frágil.

– Por favor, não me deixe nunca. Não estou pronto para ser filho único de novo.

Memenda

 Hoje é sábado. Os sábados são para o vento.

As redes de todos os pescadores da minha cidade voltam vazias desde terça-feira. Eles culpam meu pai e abriram buracos na sua canoa. Meu tio não tem mais permissão para vir a nossa casa.

Em Fida, os bebês de tartaruga começaram sua jornada em direção ao mar. Na sexta-feira, Fiifi jogou fora a coleção de conchas.

Os sábados são para o desconhecido. Se quiser falar com deus, fale com o vento e eles responderão. Os sábados são para lidar com o sobrenatural.

Estou na praia, meu queixo apoiado nos joelhos. Sempre gostei do oceano, mas agora tem algo que constantemente me guia em direção ao mar. Às vezes, escuto Mãe oceano quando estou tomando banho. Fico parado com os olhos fechados e deixo a água correr pelo meu corpo até que alguém – geralmente minha mãe – bate na porta do banheiro e me manda parar de gastar água. Mãe Oceano continua me importunando para que a visite. Outras vezes, escuto um urro e um rosnado grave. Sei que eles vêm da ilha de Afia.

As tartaruguinhas ainda estão fazendo a jornada. Quero me juntar a elas e nunca mais deixar o oceano. Mas, por agora, é o bastante ter a água do mar lavando meus pés.

Ebo é o único que não me questiona quando venho aqui. Ele costuma vir junto comigo. Penso em falar para ele sobre os sons que tenho escutado, mas não tenho certeza se ele é ou não a criatura que vi. Olho para ele. Está deitado usando óculos de sol e com a cabeça encostada na areia. Já tem duas horas que ele não diz nada.

– O que aconteceu quando você quebrou o tabu? – Pergunto.

Ele se senta.

– O que ela te mostrou?

Escutar todas aquelas vozes e aqueles gritos sem corpo é infernal. Mas, estranhamente, é reconfortante saber que essa experiência não é só minha.

– Massas de carne – respondo – Algumas parecem até pessoas mas consigo perceber que tem algo de errado com elas. E agora estou ouvindo o tempo todo vozes pela cidade.

Os lábios de Ebo se contraem.

– Você vai aprender a ignorar as vozes. Eu não cheguei a ver corpos, só sangue. A cidade inundada de sangue.

– Então, aquilo que eu vi é o que realmente existe na Ilha de Afia?

– Sim, só que da próxima vez que você ver a ilha, não vai ser na sua cabeça. Você estará de fato lá.

Seguro minha cabeça com as mãos.

– Por quê?

– Tenho certeza que você nunca escuta o que te digo – diz Ebo – A ilha está sempre flutuando em direção à costa por um motivo. A Mãe Oceano quase não consegue mais segurá-la. Ela está muito mais fraca do que no passado.

Olho para o mar e percebo que a ilha de Afia está mais perto agora do que já estivera a minha vida toda. Em breve não será mais necessária uma canoa para chegar lá.

– Você não respondeu minha pergunta.

– Você já vai entender. – Ebo responde – Às vezes,  quando alguém quebra o tabu, a Mãe Oceano cria laços com essa pessoa iguais aos que ela tem com a cidade. Aqueles que então pertencem a ela devem ajudar a manter a ilha de Afia longe.

– É uma ilha – deixo escapar a frustração na minha voz – Como ela vai ser afetada por qualquer coisa que a gente faz?

– Bom, isso requer um pouco de magia lunar e uma viagem para a ilha para destroçar alguns monstros.

– Para de contar outra de suas histórias.

– Só porque é uma história, não significa que não seja verdade.

Sinto algo entalado na garganta.

– Eu não pedi para fazer parte disso. Quem se importa com o que essa ilha faz?

Meu tio coloca os óculos de sol na cabeça.

– Essa história de como viemos do interior que o pessoal conta na cidade está incompleta. Não muito tempo depois, houve uma guerra civil, alguns dos mais antigos queriam transformar a Mãe Oceano em uma arma. Eles levariam essa ideia a cabo a qualquer preço.

Meus dedos do pé pressionam a areia entre eles.

– Magia de sangue tem consequências horríveis, você viu no que eles se tornaram. – Ebo disse, sua voz sem hesitação – Foram despejados na ilha, que na época costumava ficar tão longe que mesmo da margem da praia você não conseguia vê-la. Afia não é o nome de verdade da ilha, sabia? A cidade costumava chamá-la de Efiase. Sabe o que isso significa?

Arregalo os olhos. Todos esses avisos de perigo começam a fazer cada vez mais sentido.

– Prisão – digo, sentindo o gosto amargo deixado pela palavra em meus lábios – Então, aquela coisa lá embaixo com tentáculos… é a Mãe Oceano?

Ebo concorda com a cabeça.

– Ela se parece com o monstro que você vive descrevendo.

– O espírito dos mares nem sempre teve aquela aparência. Seja lá qual foi essa magia de sangue que fizeram, acabou afetando ela também.

– E as coisas na ilha são os Desconhecidos?

Ebo ri, levanta-se e mergulha no mar. Pouco depois, sua cabeça desponta em meio às ondas.

— Venha, entre também!

— Não.

— O pior  já aconteceu.

Parte de mim sabe que nada de mal vai acontecer. Ebo não deixaria nada acontecer, mas estou receoso de entrar na água. Parece-me desrespeitoso. Quando mergulho, vejo a criatura da terça-feira nadando por ali. Não foi uma alucinação minha. É verdade, a criatura tem o rosto de Ebo.

— Tio Ebo? — Pergunto e levo a mão à boca. Mas, percebo então que consigo respirar.

Olho para meu corpo. Parece com o de Ebo, mas minhas escamas e nadadeiras são laranja. O que eu sou? Em pânico, nado em direção à superfície e me jogo na areia quente.

— Não, não! — Grito. Mexo as pernas e dobro elas contra meu peito. — O que você fez comigo? Porque tá acontecendo isso comigo?

— Calma, você ia acabar descobrindo mesmo. Seu irmão vai lidar com isso melhor que você, e olha que ele é só uma criança ainda.

Aquelas palavras só serviram para me deixar mais apavorado.

— Fiifi vai ficar assim? E o que é isso?

— Nós somos os Desconhecidos.


Nana Afadua Ofori Atta

Nana Afadua Ofori Atta é uma escritora, poeta e ávida tenista ganense de Takoradi. A escrita dela apareceu na Lolwe, Fantasy Magazine, Crow & Cross Keys, AFREADA,  Lumiere Review e outros lugares. Ela pode ser encontrada no Twitter @afaduawrites.

Outros planos | Ebere Obua

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Art by Sunny Efemena

Tradução de “Other Planes” (Omenana, Issue 25, March 2023)

Traduzido por/Translated by:

Elton Luiz Aliandro Furlanetto

Mônica Stefani

Você esteve aqui antes; nessa casa com o portão preto com detalhes em dourado e espigões afiados na parte de cima. Nessa casa com as buganvílias rosas que se apossaram da cerca de alvenaria, tanto que mal dá para ver o cimento. Você sabe que os donos da casa têm um cachorro bonito e branco com uma coleira roxa. Você se lembra do quanto achou engraçado quando a fofurinha latiu para você naquela noite até que um homem grisalho, enrolado em um robe preto, veio gritar com ele.

– Tá latindo pra quê?! – o homem gritou antes de ligar uma lanterna e olhar os arredores. Ele não conseguiu ver ninguém, então sibilou e pegou o cachorro, ralhando com ele no caminho até a porta.

Você ainda está olhando para o portão quando ele se abre e o homem e o cachorro surgem de trás dele.

#

Você nunca tinha percebido quão raro era ter sonhos tão vívidos e controlados como os seus até que viu um homem no TikTok fazer piada com a aleatoriedade dos dele. Com curiosidade, você começou a perguntar para colegas de classe como eram os sonhos deles e delas. Era uma pergunta esquisita, mas as respostas eram divertidas: aparecer pelada ou pelado na escola, beijar as paqueras, também muita gente caindo.

Você aprendeu sobre o sonho lúcido nas horas que ficava no computador um sábado à noite. Se perdendo em meio a artigos sobre essa habilidade aparentemente especial, nem viu o ponteiro dos minutos invadir sorrateiramente sua hora de dormir até que a mão do seu pai acertou sua bochecha tão forte, causando um zumbido nos seus ouvidos que te deixou sem dormir a noite toda.

É nessa sensação que você está pensando agora, um pouco menos de dez minutos para sua hora de dormir, enquanto lê sobre ao que sua pesquisa na Internet tinha te levado: projeção astral.

 – É pra isso que você está usando seu tempo no computador?! – você escuta antes que a mão do seu pai entre em colisão com seu rosto.

– É esse tipo de coisa que matou sua mãe! Essas coisas ocultistas! Você quer se juntar a ela, abi, é verdade?

Você quer perguntar a ele o que ele quis dizer, mas entre a sensação de ardência nas suas bochechas e a intensidade da voz dele enquanto segue narrando os perigos da viagem astral, você decide que não é a melhor hora.

#

Você consegue finalmente se projetar de novo nesta noite porque é sexta-feira e seu pai está num encontro de oração da madrugada para os diáconos. Tia Lolade, irmã dele e sua cuidadora dessa noite, é uma versão mais carinhosa dele, então ela deixa você ficar duas horas no computador em vez de uma e ri da instrução do seu pai de se certificar de que você não esteja “zanzando no reino dos espíritos” durante seu sono.

– Como eu seria capaz de fazer isso, abeg, por favor? – ela diz para você mais tarde, com um sorriso no rosto. – Devo ir no seu quarto e começar a gritar “espero que seu espírito esteja em casa, ein!”?

Você se lembra da brincadeira antes de cair no sono e dá risada.

– Não, ele não está – você pensa com seus botões.

Quando você finalmente dorme,  se retira do sonho lúcido, e se projeta para o plano astral, a estranheza do lugar te surpreende; como o chão debaixo de você parece água brilhante; como você afunda nele para aparecer em um novo ponto toda vez; quão estranhos os seres são ali, com rostos e corpos que sua mente humana não consegue compreender. Há caudas e chifres e barbatanas e pelos e múltiplas mãos e múltiplos olhos – todos de cores variadas. Chega a ser espantoso.

O que é mais estranho, entretanto, é que você consegue entender esses seres: você não sabe a língua que falam e não pode compará-la com nada que tenha ouvido na Terra. Mas quando fala com eles, e eles respondem, você sabe exatamente o que estão dizendo.

Você não vai se projetar para o reino material tão cedo.

#

Você encontra sua mãe na quarta viagem. Suas pesquisas na internet já te ensinaram que há outras entidades no reino astral. Você sabe como evitar as entidades que irradiam energia negativa. Você sabe de quais pode se aproximar para conseguir ajuda. Você sabe que alguns dos seres humanos ali não estão “despertos” o suficiente para estarem conscientes de suas presenças, então você já não sente mais que estão sendo arrogantes quando te ignoram. Para falar a verdade, você não liga para esses seres de jeito nenhum. Você só está ali pela experiência: para explorar as cidades que sua mente humana não consegue vislumbrar, para experimentar a fluidez do tempo e espaço, movendo-se para rumos diversos em segundos. Você está ali para escapar da sua realidade. Ainda assim, ali está sua mãe morta há três anos, uma mulher que tirou a vida com as próprias mãos, te deixando nas mãos de um homem que vocês duas desprezavam. Uma mulher que você encontrou com os olhos avermelhados naquele início de manhã de domingo – quando seu pai havia pedido para você ver porque ela ainda não estava pronta para ir à igreja – balançando em uma corda amarrada a um gancho no teto, com a língua saltando da boca, na qual a saliva se convertia em espuma. Quando o corpo pálido dela começou a se debater, a esperança te cobriu de expectivas, mas a realidade não foi gentil o suficiente para te permitir o tempo de descê-la dali. O corpo dela parou.

É dos espasmos que você lembra quando a vê, da forma que a cena passava na sua mente, hora após hora, dia após dia, mês após mês, até que gradualmente, isso afundou no mais profundo e escuro recanto da sua mente, somente emergindo para te atormentar nos momentos mais tristes. Depois, você se lembrou do vazio, a crueldade dele, de como isso te baniu a longos períodos de sono para esquecer sua presença, rastejando de volta quando você acordava, te lembrando da sua perda e você começava a chorar até o sono te encontrar novamente. Você pensava que seu pai também se sentia vazio. Ele começou a beber – algo que você nunca esperava que esse coroa super moralista fosse se dar a liberdade – e resmungava regularmente sobre como as “afiliações demoníacas” da sua mãe eram as culpadas. Você achou estranha a acusação de que havia demônios invisíveis. A única afiliação demoníaca dela era ele.

#

A segunda vez que você encontra o fantasma da sua mãe é quase mágica. Você percebe que tem uma atração por aquilo – por ela. Como se tivesse respondido a uma invocação feita por ela, e é um chamado ao qual não pode resistir, você não quer resistir. Ela te abraça. Você a abraça o mais apertado que pode e deseja conseguir chorar. Muitas emoções estão atravessando você violentamente nesse exato momento.

– Senti tanto sua falta, meu amor – ela começa, mas você só consegue manear a cabeça em resposta.

Você tem tanta coisa para contar para ela: as conquistas que ela perdeu, os momentos difíceis quando ela não estava presente para te confortar, os maus tratos dos quais ela não podia te proteger. Mas você não fala sobre nada disso.

– Por que você fez aquilo com você mesma? – você pergunta, em vez de falar o que queria, e começa a se perguntar sobre a adequação da sua pergunta assim que ela sai da sua boca.

Ela desvia o olhar primeiro, e o corpo dela desliza para frente para que ela consiga segurar o rosto entre as mãos.

– Eu não quis ser um fardo para você e seu pai – ela diz após um suspiro dramático.

– Um fardo? – você pergunta, incrédula. – Você não era um fardo. Se esse é o caso, o único fardo da nossa família continua vivo e passando bem!

– O médico me disse que eu estava com câncer – ela respondeu e seus olhos arregalaram, mas ela não te dá chance de falar. – Câncer no pâncreas.Terminal. Quanto mais a gente falava sobre o tratamento, mais eu entendia que o peso financeiro de me ajudar ia colocar nossa família em maus lençóis. Por Deus, só os exames já me deixaram arrasada.

– Por que você não contou pra todo mundo, mamãe? – você pergunta para ela, encarando-a profundamente. Muitos pensamentos estão dançando na sua mente sobre essa revelação, mas esse é o mais importante. – A tia Lolade, a vovó, o vovô, seus irmãos e irmãs, até o papai, eles iam conseguir esse dinheiro juntos. Teriam encontrado uma maneira.

– E para quê? Pergunte ao Google sobre a expectativa de vida de pacientes terminais de câncer. Imagina eu pedir que minha família gastasse todas as economias, sabendo perfeitamente que eu não seria capaz de sobreviver por mais de um ano? Tive de refletir sobre essas coisas.

– Mas você não pôde refletir sobre o efeito de que ver você balançando pendurada no teto ia me causar – você murmura.

De repente, você se dá conta de uma coisa – talvez sua mãe não estivesse consciente da gravidade de suas ações quando as realizou.

– Não pensei em tudo – ela começa a explicar, mas você não quer dar ouvidos àquilo.

– Você não pensou no que ia acontecer com a gente ao ver você daquele jeito? Não pensou no que o papai ia se tornar depois de ver você morrer daquela forma?

– Eu conheço seu pai. E eu sei que se tem uma coisa que ele detesta na vida é ter um problema financeiro jogado nele do nada. Ele faria a coisa certa e ia contribuir para o meu tratamento, mas ele ia me odiar até eu morrer, o tempo todo, reclamando com qualquer pessoa que se dignasse a ouvir, que foram minhas “afiliações demoníacas” que me deixaram tão doente. Depois disso, a raiva dele seria o fato de que ele gastou todo aquele dinheiro, só para eu morrer no final.

– Apesar de tudo que você disse, ainda não consigo encontrar o motivo para você ter feito o que fez, – você diz para ela, mas ela continua, como se ninguém tivesse dito nada.

– Foi exatamente o que aconteceu depois que a mãe dele morreu. Você não estava lá para vivenciar aquilo, mas eu estava.

– Então me largar com ele era a única opção?! – você pergunta. Você não percebe o quanto a resposta dela tinha te deixado com raiva até que você ouve o que disse.

– Você me largou com ele! – você continua. – Você pensou no que iria acontecer comigo?! Você pensou no quanto eu iria sentir a sua falta? Você pensou…

– Foi precipitado, não posso negar, – ela te interrompe. – Mas preciso que saiba que não foi minha intenção te deixar para trás. Não estava pensando com clareza, só fiz o que parecia o melhor para você. Não tinha os recursos  ou o apoio para fazer as coisas do jeito certo e sinto muito, meu amor. Realmente sinto.

A voz dela some, você se sente mal por ter levado a conversa para esse lado. Mas você tem todo direito de ter essa chateação, você acredita. Uma indecisão te prende entre sentir falta da sua mãe e detestá-la por ter ido embora.

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– Como você aprendeu a fazer isso? – ela pergunta, mudando de assunto. – Você veio aqui me ver? Não consigo imaginar que seu pai teria permitido que você aprendesse sobre viagens astrais.

– Ele não deixou – você diz e ri um pouco para consigo.

Você conta para ela como ele pegou você pesquisando sobre projeção astral na internet e a super-vigilância do seu sono que se seguiu a isso. Você conta para ela como começou, sobre o cachorro que conseguia ver você apesar de o dono dele não conseguir.

– Sempre soube que passei alguma coisa para você. Isso compensa o quanto você parece o seu pai em vez de mim – ela diz, rindo discretamente. Você faz o mesmo. Estava com saudade de rir com a sua mãe.

 – Ele acha que é tudo do mal – você diz.

– Ah. Existe de fato mal por aqui. O engraçado é que eu já sabia disso antes de vir. Mas estar aqui há tanto tempo – como a alma de uma pessoa que tirou a própria vida, isso realmente esfrega o mal na sua cara.

– É diferente? – você pergunta. – Para as pessoas que não cometeram suicídio?

– Eles e elas vão para o céu. Sem escalas. Ou para o inferno – ela diz, esticando a mão para cima e para baixo para enfatizar. – O resto de nós? O universo não nos dá nem mesmo uma chance.

Ela fala sobre as lembranças que se seguiram à sua morte. Como ela viu as outras almas subirem velozes como fogos de artifício, enquanto ela afundava cada vez mais em outros planos. Ela fala sobre o cansaço que a acometeu quando chegou, como se o lugar tivesse a embrulhado em um manto de fadiga insuperável.

– Eu daria qualquer coisa para ter um corpo novamente. Esse lugar muda você. Não sou a mãe que você perdeu, meu amor. Sou uma versão destruída dela.

– Você não está destruída para mim – você tenta confortá-la, e abraça a cintura dela. Ela apenas suspira.

– Às vezes – ela começa – quando me sinto muito solitária ou tive que lutar contra algum ser de vibração mais baixa, queria ter deixado o seu pai fazer o que era necessário para mim.

#

– Você precisa parar de vir tanto aqui  – sua mãe adverte você solenemente.

Você não sabe quantas visitas fez desde que a encontrou pela primeira vez porque parou de contar. Você aprendeu a saltar de volta para o seu corpo assim que seu pai o toca, de modo que parece que você estava apenas dormindo. Isso foi outra coisa sobre a qual sua mãe te avisou.

[image, by Sunny Efema]

Os avisos dela se tornaram tão frequentes quanto as suas viagens. Ela até te acompanha de volta ao seu corpo – para o caso de você encontrar uma entidade maligna no seu quarto. Você não consegue decidir se adora muito esse comportamento autoritário, por uma nostalgia que o sentimento do amor materno traz, ou se você não gosta.

– Você precisa entender que não é bom para seu corpo físico ser deixado vazio com tanta frequência – ela prosseguiu. – E vir aqui tantas vezes vai afetar seu cérebro negativamente. Sua realidade não é aqui. É no plano físico. Visitas constantes vão atrapalhar a sua percepção…

– O papai está no quarto – você a interrompe.

– Vamos – ela diz para você, te abraçando forte.

Dentro de milissegundos, seu corpo está na sua frente. Seu pai está te sacudindo para acordar, mas não é isso que prende sua atenção.

Há três sombras no quarto: entidades escuras com olhos vermelhos, uma constituição muscular humana, cabeças de ave e caudas de leão. Elas se viram para você e sua mãe assim que vocês chegam. Seu pai não consegue vê-las.

– Vá para o seu corpo – sua mãe começa a sussurrar para você. – Vou tentar mantê-los longe dele.

Você acena com a cabeça e vai para o canto do quarto o mais calmamente possível. No centro do quarto, sua cama já está cercada pelas figuras, então é cedo demais para se aproximar. Você não faz ideia do que elas são capazes. Elas te observam enquanto você se afasta da sua mãe. Os olhos vermelhos brilham ferozmente enquanto seguem todos os seus movimentos. Você percebe que não está tremendo porque não está no seu corpo. O corpo humano iria tremer muito ao ver tais entidades. Iria suar, chorar, até se mijar. Iria fugir também. Você pensa nessas coisas e fica ansiosa. Um desejo intenso pelo corpo que você tem abandonado toda noite se instala. Você precisa da realidade da qual vem fugindo, uma realidade na qual você não precisaria nunca encarar tais seres. Você está em choque.

Seu pai não percebe a cena que se desenrola na presença dele. Frustrado por tentar te acordar, ele abandona seu corpo e vai para o quarto dele, prometendo “lidar com você” quando voltasse.

Sua mãe corre para a cama, efetivamente distraindo os seres, e você aproveita para entrar no seu corpo. Seu plano falha. Uma mão feita de sombras te arremessa para a parede como se você não fosse nada além de um inseto chato. Você se choca contra o papel de parede rosa com desenho de nuvens antes que sua forma astral se estatele no chão. Você não sente dor. O sentimento é, ao invés disso, de uma fraqueza esmagadora. Você está quase paralisada. Depende da sua mãe te salvar agora.

Você consegue ouvi-la brigando com as feras. Você ouve a voz dela: aguda e frágil, contra os grunhidos profundos e guturais das feras, e você se preocupa que a forma enfraquecida dela não seja forte o suficiente para expulsá-las. Um sentimento de derrota começa a se instaurar. Ele é intensificado pelo silêncio absoluto que toma o quarto, e a sensação intensa e rodopiante que escala a sua forma astral. Seu corpo foi ocupado. 

Você leu sobre seres como esses. Como eles andam pela terra, procurando ocupar corpos de quem foi viajar no reino astral. Você nunca leu sobre como esses corpos são recuperados.

Você quer chorar sua perda. Quer gritar. Gemer e rolar pelo chão. Mas não consegue se mover. Em vez disso, o conselho da sua mãe ecoa na sua mente, chamando você de tola daquele jeito maternal que apenas um “eu te disse” consegue fazer. Agora, você vai poder viver com ela pela eternidade. Ver a sua mãe novamente. Era isso que você queria, não era?

– Mamãe – você luta para pronunciar a palavra.

Você não faz ideia de onde ela esteja, mas torce apenas para que suas últimas forças não lhe tenham sido exauridas.

Ao ouvir sua voz, as feras marcham para o canto do quarto onde jaz sua forma astral, uma após a outra, até que todas as três estejam olhando para você.

– Três. Três? – você pensa consigo mesma.

Elas começam a te levantar.

– Espera – você ouve a sua voz.

O seu corpo desliza na sua direção. Há algo familiar no ritmo dos passos que você escuta, mas você não quer aceitar a confirmação que te invade lentamente.

– Meu amor… – ela começa.

– Não acredito que você fez isso! – você tenta gritar, mas sai apenas um sussurro alto. – Por que você fez isso?!

– Eu te disse. Não sou a mãe que você perdeu.


Ebere Obua é uma estudante de medicina com vários interesses paralelos. O trabalho dela foi publicado na Olongo Africa, Preachy, The Roadrunner Review e Sylvia Magazine.

Sapatos Favoritos | Gerald Dean Rice

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Tradução de “Favorite Shoes” (Omenana, Issue 25, March 2023)

Traduzido por/Translated by:

Luís Felipe Franco de Mello

Kifa sentou-se na escada com seu vestido preto, encarando os

sapatos do seu falecido marido. A pastora Waters estava conversando

com Vdekja e Tod, a pequena reunião de amigos que comiam o que Heriotza havia trazido. A reverenda tinha realizado uma ótima missa, mas parecia estar desconfortável ainda vestindo suas roupas de ritual, puxando suas mangas de forma alternada e sorrindo com a suprema bondade enquanto o irmão de Kifa continuava a falar.

–Do jeito que eu vejo, a Vida e a Morte são os dois lados de uma mesma moeda ou talvez o contrário uma da outra, Tod disse.

– A Vida está sempre trabalhando, entregando novas vidas como uma espécie de cozinheira de restaurantes de fast food e tudo que a Morte quer é misturar toda aquela vida e beber da forma mais rápida e fácil possível. Sem o apreço de quão bonita a vida é, ou quão complexa ela é. Tod fez uma longa pausa, o suficiente para tomar um gole de seu copo de plástico. – A Vida  sempre dá esses espetáculos maravilhosos,

percebe… – Ele coloca uma almôndega na boca. –A Morte sempre toma.” Ele mastigava enquanto brincava rolando um palito de dente entre o dedo polegar e o indicador. –Desde o nascimento, a Morte está sempre bebendo aquilo que a Vida acabou de servir.

–Mas o que isso significa? – Vdekja disse, igual a um desenho animado dando de ombros. –A Morte é algo que todos conhecemos. O que isso significa?

–Eu não sei – Tod dando de ombros. – Talvez Mort fosse mais saboroso que a maioria de nós. Talvez o seu canudo tenha chegado mais perto do fundo. Não olhem para mim. Eu não sou um especialista.

Tod nunca teve farpas na língua. Ele era o irmão mais novo de Kifa, por isso Vdekja e a pastora Waters lhe davam liberdade, mas ela viu o desconforto dos seus amigos e a hesitação no sorriso da reverenda.

Era mais uma daquelas inconveniências temporárias que seriam esquecidas em breve, o único resquício era o desconforto persistente de todas as pessoas que escutaram aquilo.

O sermão da pastora Waters tinha sido apaixonante, pessoal, educado. Ela tinha captado tanto a essência do seu marido quanto Kifa poderia esperar. O silêncio da reverenda agora, levando em consideração a gafe do irmão de Kifa, foi para ela. Ele deveria começar a pedir recibo para cada pico que ele pagava. Seus erros eram tão comuns quantos sapatos nos pés.

Por falar em sapatos…

Kifa sentou endireitando-se, seus olhos retornaram novamente para aquilo que ela falhou em ver desde que voltaram do cemitério. Fazia meses que ela não via os sapatos.

Eles estavam bem ali, na parte de baixo da sapateira, como sempre tinha estado quando não estavam nos pés do marido. Ele estava doente há tanto tempo… ele tinha ficado de cama por tanto tempo antes de finalmente se render.

–Você está bem, minha querida? –  Heriotza perguntou, de repente ao seu lado. –É uma pergunta besta, me perdoe, mas eu vi sua cara agora.

–Não. Me desculpe. Eu só… – Kifa suspirou, apontando com seus olhos para o par de sapatos na sapateira. –Esses são os sapatos do Mort. – A outra mulher virou-se para olhar. – Os sapatos favoritos dele. Quando saía de casa, ele usava esses. Não importava a ocasião. Aniversários, formaturas, velórios— exceto para o seu próprio.

Ela mordeu seu lábio como se pudesse mastigar suas próximas palavras ao invés de dizê-las. –Eu odeio esses sapatos. Kifa riu e Heriotza a acompanhou. –Sabe qual é a pior parte?

Sua amiga agarrou sua mão, aparentemente sentindo que a próxima frase era difícil de ser dita.

–Eu não me sinto mal. Quero dizer, eu me sinto. Eu amo ele e sinto sua falta. Mas não me sinto mal por ele finalmente ter partido.

–Minha querida. Ele estava sofrendo. Você apenas está aliviada que tudo acabou. Ela entrelaçou suas duas mão sobre as de Kifa e apertou-as gentilmente.

Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto dela. –Eu me sinto mal, por não me sentir mal. Isso faz algum sentido?

–Minha Kifa… você é uma boa mulher. Uma mulher amável. Mort foi um bom homem. Ele conhece seu coração e sabe que estava partido mesmo antes de ele partir. As peças não precisam mais encaixar como antigamente para que você as deixe sarar.

Heriotza era uma boa amiga, mas Kifa não estava à procura de conselhos. Kifa percebeu que precisava sentir o que sentiu. Ela se sentiu vulnerável e sozinha e precisava se cortar com os pedaços do coração partido.

A doença que havia crescido dentro dele tinha esperado nove meses. Implorava para que ela olhasse e desafiava-a a desviar o olhar. Se tivesse sido repentinamente, teria causado uma pausa em seu luto e um ponto definido no qual ela teria sido capaz de se curar. Ao invés disso, a plasticidade da sua tristeza tinha se fixado em sua alma como um bandeide; cada memória de Mort, mesmo doente ou saudável, como um rebarba, quando ela arrancava o bandeide.

–Olha, mana, cê tá bem? – Tod veio com um punhado de lenços de papéis. Ele era bom naquilo que ele era bom, e ela pegou alguns com gratidão para enxugar os olhos.

–Eu estou bem. Eu só vi…Eu só vi uma coisa que me lembrou do Mort. Ela assoou o nariz, depois cruzou seus braços sentindo um arrepio. –Acho que preciso me deitar.

–Almont e eu vamos arrumar as coisas e vou mandar ele pra casa – Heriotza disse. –Eu vi uma garrafa de Prosecco[1]na geladeira. Eu e você vamos ter uma noite das meninas.

Kifa não pensava que estaria disposta a ter uma visita, mas não teria forças para suportar a decepção no olhar da melhor amiga. Seu irmão beijou seu rosto e a abraçou antes de ela subir as escadas. ([1] vinho branco italiano.)

Kifa voltou, descendo as escadas e catou os sapatos favoritos do marido e os abraçou contra o peito.

–Uma boa noite para todos vocês – ela disse. – E obrigada por virem.

O quarto deles era subindo as escadas, à esquerda. Kifa atravessou pelo batente da porta e deitou-se, com seu vestido preto, sobre a cama que dividiu com Mort por tantos anos, com os sapatos ainda em seus braços.

Eles nunca tiveram filhos — seu maior arrependimento foi que não havia uma parte dele ainda no mundo. Ela era involuntariamente uma pedra enraizada após a sua perda. E apesar de Heriotza estar sempre presente com ela, ela estava sozinha.

Mort deveria ter sido enterrado com esses sapatos.

Kifa não sabia como pôde esquecer deles por tanto tempo. Talvez ela havia se tornado imune à presença deles, como placas em uma estrada por onde você já passou muitas vezes. A invisibilidade deles tinha sido provavelmente fruto de uma ilusão de óptica. Os sapatos do homem que literalmente andou por toda parte com eles e então subitamente não podia sequer andar da sua cama para o banheiro.

Ver eles um instante atrás foi como um chute em seu coração, pior que os últimos dias de vida de seu marido.

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Ela se espalhou pela cama, cobrindo o máximo que conseguia do território dele, reafirmando a sua reivindicação contra o que tirou Mort dela.

Ela chorou nos sapatos dele até cair no sono.

Kifa percebeu que estava despertando. As pesadas cortinas tinham sido fechadas, mas parecia que ainda deveria ter luz, apesar da escuridão do quarto.

–Olá? – ela disse, o tremular de sua voz era o único indicativo de que estava com medo. –Ainda tem alguém aqui? – Kifa não tinha motivos para sentir medo, mas tinha algo que fazia ela pressentir o perigo. Heriotza deveria estar ali, a não ser que tivesse mudado de ideia e ido embora. Antes de subir as escadas, Kifa não queria nada além de ficar sozinha, mas agora torcia para que a melhor amiga não tivesse ido embora.

Ela se arrastou para fora da cama e foi em direção à porta do quarto.

–SKRRP–

Alguma coisa estava na casa. Aquele não parecia o som de ninguém que já tivesse estado em sua casa, e soou mais…como algo orgânico e menos como uma máquina de lavar desequilibrada ou o tilintar metálico da ignição de um forno. Tábuas rangiam e estalavam no andar de baixo, enquanto algo se movia livremente.

Ela envolveu a mão na maçaneta e girou-a o mais lento que podia. Um ranger sussurrante quando as entranhas metálicas deslizavam entre eles ou por dentro deles—-Kifa não fazia ideia como aquilo funcionava—ecoou pelos seus ossos da sua mão até sua boca e ela cerrou os dentes, abafando o minúsculo grito que anunciaria que estava ali.

A racionalidade monologou que quem ela ouvia lá embaixo só podia ser Heriotza. Kifa disse palavras para se tranquilizar, enquanto puxava a porta e espiava a nítida escuridão do corredor.

—SKRRP—

Kifa jogou a cabeça para trás, uma brisa de ar se esgueirou para dentro de sua boca. O primeiro som veio de algum lugar do andar de baixo. Talvez da cozinha, talvez da sala de jantar ou talvez da entrada. Mas o segundo definitivamente estava mais próximo, acompanhado pelo ranger rítmico de passos subindo as escadas.

Ela precisava chamar a polícia. Seu celular não estava na mesa de cabeceira, onde ela o deixava todas as noites. Em sua inquietação, antes de ter subido as escadas, ela provavelmente o deixou na sala de estar. Não tinha telefone fixo já fazia quase 10 anos, deixando a ela a única opção de se esconder.

Kifa tinha apenas os dois espaços clichês para se esconder. Embaixo da cama havia várias caixas de sapatos e tirá-las de lá apenas indicaria exatamente onde ela estava. A porta do armário estava parcialmente aberta e era grande. Talvez ela passasse despercebida.

Ela forçou sua entrada, a porta rangeu levemente quando ela fechou.

—SKRRP—

Estava do lado de fora do seu quarto, raspando a rocha que era seu senso de segurança o seu senso de segurança. Kifa achou um lugar na parte de trás

do armário e sentou-se, encolhendo as pernas em posição fetal e as abraçando. Então ela percebeu que ainda estava segurando os sapatos do Mort. Ela queria agarrar-se a eles, como uma âncora fixando-a a uma ideia de calma. Mas ela os botou no chão para que tivesse suas mãos livres para que ela pudesse puxar seu vestido para cima dos pés descalços. Talvez se ela fosse confundida com uma pilha de roupas, poderia passar despercebida.

O andar estendido de pé se arrastando pelo chão estava dentro do quarto. Eles deram a volta pela cama e então pararam — talvez a coisa estivesse olhando debaixo da cama. Ela se perguntou por um momento porque é que pensava no que quer que estivesse no seu quarto era algo e não alguém. Talvez por ser algo indefinido, que ela não tinha visto um rosto para tornar uma pessoa completa.

Kifa tapou sua boca com as mãos, pronta para agarrar qualquer som errado que ela pudesse fazer contra sua vontade.

—skrrp—

Estava próximo do armário. Dobradiças, que nunca desejaram óleo, rosnaram e ela não tinha certeza absoluta de não ter gemido com elas. Ela conseguia distinguir tons de preto e via o movimento de formas indistintas, apesar da falta de luz. À medida que aquilo se aproximava, Kifa desejou fazer parte da parede, que sua carne fosse a mistura de algodão e poliéster do seu vestido e que sua respiração fosse o fio de ar que sai pelo duto de ventilação do alto da parede.

Dois pés pararam bem na frente dela. Ela mal os conseguiu distinguir. Aquilo não tinha acendido a luz, movia-se como se conhecesse sua casa tão quanto ela mesma. As roupas acima da cabeça dela sacudiram e ela percebeu com o estalar de ossos nus, que aquilo estava inclinado acima dela, a cabeça daquilo separava camisas e calças penduradas.

Kifa estava emocionalmente e fisicamente desarmada, vendo os ossos longos e finos dos dedos indicador e do meio, divididos como em um sinal de “paz e amor” de ponta cabeça. Mas eles não estavam indo em sua direção, ao invés, agarraram a língua dos sapatos do Mort. Esse visitante já tinha estado em sua casa antes, embora a última vez tenha sido pelo último suspiro de seu marido.

Enquanto os calçados de Mort eram levados para fora de sua vista, os pés arrastados afastaram-se. Algo ficou no rastro daquilo e Kifa pensou que poderia ter estendido seu braço e tocado na bainha da coisa, mas ainda tinha muito medo para se mexer. Aquilo retirou-se rapidamente, o ar do seu lugar anterior contraiu-se para um ar menos úmido, causando uma respiração mais curta. Passou um longo momento antes de Kifa se arrastar engatinhando, tateando de volta para seu quarto.

Elas nunca tinham se encontrado oficialmente e ela esperava não aparecer no seu radar durante muito tempo. Kifa sentiu uma onda de alívio inesperado quando a mensageira de seu marido levou-lhe os sapatos.

Mas quando sua mão tocou a tampa da caixa de sapatos no chão do carpete, ela parou. Kifa foi apalpando tudo até encontrar a caixa que estava embaixo da cama. Então mexeu no interior da caixa.

Seu par de saltos altos favoritos que estava lá tinha desaparecido.


Gerald Dean Rice possui vários contos e alguns livros de autoria, incluindo Absolute Garbage, Total Nonsense, e Utter Ridiculousness. Ele possui um Bacharelado em Inglês da Oakland University e vive em Metro Detroit.

A sala dos escritores | Chao C. Shete

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Tradução de “The writer’s room” (Omenana, Issue 25, March 2023)

Traduzido por/Translated by:

Isabely Moura Fujii

Mayara Gabrielle Freitas

Segundo todos os indícios, isso parecia um sonho, do tipo que tinha o potencial de se transformar em um pesadelo caso ela não acordasse.

Amana abriu os olhos vendo o mesmo prado. Flores roxas à sua direita, que se estendiam até onde a vista alcançava. Um riacho, talvez um pequeno rio, podia ser ouvido fluindo ali perto. Ela estava descalça. Olhou ao redor, procurando alguém, talvez algo. Deu um passo para ter uma visão melhor e quase instantaneamente sentiu as vinhas sob seus pés ganharem vida. Elas faziam cócegas. Ela as odiava. Assustada, suas mãos se agitaram no ar, tentando pular o mais alto que podia, mas era tarde demais. As vinhas já estavam enroladas em seus tornozelos, ancorando-a ao chão. Ela estava presa.

Amana vinha tendo esses “sonhos acordados” há alguns meses. Ela também havia aprendido a se libertar deles de alguma forma. Não sabia explicar, mas sempre conseguia – só que, dessa vez, tudo o que tentou falhou. Várias tentativas anteriores de afrouxar as vinhas emaranhadas de suas panturrilhas se mostraram inúteis: quanto mais tentava, mais apertadas elas ficavam. A pele do tornozelo e da panturrilha estava agora dolorosamente sensível. Ela massageou a panturrilha enquanto fazia mais uma tentativa desesperada de arrancar as vinhas.

— Elas têm vida própria — murmurou para si mesma, tentando não entrar em pânico.

— Por que não consigo acordar deste pesadelo? — Ela se perguntava.

Seus dedos procuraram qualquer coisa em que pudessem se agarrar e, usando a mão direita, cavou dolorosamente entre as vinhas, causando atrito em sua pele. Seus olhos começaram a lacrimejar. O desespero estava gravado em cada dobra de seu corpo. — Definitivamente, não é disso que os sonhos são feitos?

Ela puxou uma das vinhas que estava na metade de suas coxas.

— Não é disso que os sonhos são feitos — uma risada seca e sarcástica emanou dos arbustos atrás do baobá. De onde estava, ela podia ver sua silhueta. Estava se movendo em sua direção.

— Acorde, Amana — ela sussurrou desesperadamente, mas já era tarde demais. O homem de um metro e oitenta já havia passado pelo baobá. As vinhas ainda estavam bem intactas. Na verdade, pareciam ter engrossado desde o som da voz retumbante de alguns segundos atrás.

— Não chegue mais perto.

Havia um tremor em sua voz. Ela permaneceu ali, muito abalada para se mover. Sua respiração ficou mais profunda e rápida, e seu coração tropeçava em seu próprio ritmo.

— Ou você vai… o quê? — Ele rebateu. — Eu não devoro garotas, especialmente adolescentes. Prefiro adultos. É um gosto adquirido. — Ele parou para olhar para Amana. Os olhos dela se moviam freneticamente, procurando uma saída. O horror em seu rosto o fez se arrepender do que disse.

— Eu estava brincando. Por favor, não chore — ele fez uma pausa, — e também não tente fugir, você só vai se machucar ainda mais — acrescentou, afastando o manto da testa. Ele fez um movimento para segurar a mão dela, mas se deteve. Percebeu que os olhos de Amana ainda estavam fixos nele com terror, incapaz de desviar o olhar.

— Juro que não quero lhe fazer mal — insistiu ele, levantando os braços em sinal de rendição. — Prometo que só quero ajudar. Além disso, parece que você precisa de uma mãozinha extra se quiser escapar desse pesadelo.

Silêncio. Um silêncio incômodo e enervante ecoou pela floresta.

— Então? Posso ajudar? — Disse isso sorrindo. Ele tinha um daqueles raros sorrisos tranquilizadores.

— Claro, que escolha eu tenho? — Amana pensou enquanto encolhia os ombros resignada.

#

Amana era a única garota entre oito filhos. Seus sete irmãos, todos especialistas em seus ofícios, variavam de peixeiros a ferreiros, portanto, sua família nunca passava necessidade.

Seus pais pareciam se dar muito bem para a época deles. Ela vivia em tempos mais simples: os padrões eram mais baixos e todos pareciam muito mais felizes. Sua mãe, Amali, era parteira. Quando não estava ocupada trazendo vida ao mundo, estava dando vida à casa deles. Ela vinha de um vilarejo logo além da colina. Casou-se com o tecelão aos 19 anos de idade, depois que seu marido foi morto em um ataque ao gado.

— Nunca vi ninguém mais bela — o pai de Amana costumava dizer aos amigos em seus momentos de bebedeira.

Seu pai, Akida, um tecelão de profissão, sempre podia ser encontrado com fibras de sisal em uma mão, um cachimbo de tabaco pendurado no canto da boca e uma garrafa de bebida barata ao alcance do braço. Amana considerava esses três itens como suas ferramentas de trabalho. Mesmo com seu hábito preocupante de beber, rivalizado apenas pelo chefe do vilarejo, Beka, era o melhor pai que uma filha poderia desejar. Apesar de todos os seus defeitos, ele realmente amava as duas mulheres mais importantes de sua vida.

Amali é uma mulher pequena e de traços delicados. Bonita de um modo imperfeito, acessível. Não é o tipo de mulher que te deixaria paralisado, mas você certamente adoraria conhecê-la. Sua aparente vulnerabilidade esconde uma força da qual ela mesma não tem consciência. O relacionamento entre eles é caloroso e compreensivo, não demonstram companheirismo, mas são realmente apaixonados um pelo outro.

Amali teve quatro filhos com seu marido. Ele, também viúvo, teve quatro filhos com sua antiga esposa, que morreu dando à luz. Ele costumava dizer a Amali:

— Talvez se metade das parteiras deste vilarejo fosse tão boa quanto você, meu amor, provavelmente minha Siti estaria aqui — e, quase que instantaneamente, como se percebesse o que essas palavras causam em uma mulher, ele acrescentava: — mas então eu nunca teria conhecido você, minha querida. A vida é realmente inconstante, minha adorada Amali. — Ele dizia isso em meio a uma série de soluços. Amana sempre teve a teoria de que foi a dor que uniu seus pais. Ambos entendiam o que significava se importar com alguém e perdê-lo. Embora sua mãe nunca falasse muito sobre o ex-marido, Amana reconhecia que ele era um bom homem que não merecia uma morte tão violenta.

Amali encontrou o corpo do marido alguns dias após o ataque ao gado, com o rosto pisoteado por cascos de vaca e cortes profundos na lateral do abdômen e na perna. Seu corpo estava curvado em posição fetal; ele parecia tão tranquilo sobre a poça em que estava deitado. Não estava claro o que, entre a debandada dos animais e os invasores mascarados, o havia matado.

O homem do sonho deslizou sobre as vinhas grossas. Seu manto pesado se acomodou sobre o leito das ervas daninhas, curvando-as a ponto de arrancá-las, apenas para se erguerem novamente quando ele passava. Sua aura era firme, mas reconfortante, confiante, mas gentil. Ele tinha um jeito de fazê-la se sentir em paz, mesmo que tivesse acabado de conhecê-lo.

O tempo passava muito rápido na terra dos sonhos, trazendo um novo significado para a expressão “fração de segundo”. De alguma forma, sempre parecia que ela havia percorrido uma distância maior do que deveria em um período muito curto de tempo. A transição do tempo era muito rápida, rápida demais.

#

Enquanto tentava decifrar o tempo, ocorreu-lhe que não havia perguntado para onde estavam indo. Estavam no meio do campo de lavanda, todas florescendo entre a grama, seus pés descalços desfrutando do chão acarpetado e do cheiro do orvalho da manhã.

— Delfins? — pensou ela. Eram as flores favoritas de Jelani.

— Não, não são Delfins — respondeu ele. — Sim, posso ouvir pensamentos — acrescentou, se antecipando à próxima pergunta dela.

As lavandas trouxeram de volta a lembrança dela e de Jelani, seu meio-irmão, caminhando pelas montanhas a caminho de visitar o túmulo de sua falecida avó – de quem ela tinha recebido o nome – há alguns anos. Jelani sempre parava para colher um delfim no caminho e dava detalhes desnecessários sobre eles, incluindo a época do ano em que estavam florescendo. Tudo o que ele sabia sobre flores vinha de sua avó. Jelani sempre falava dela com muito carinho.

— Ela era uma força da natureza. Apaixonada em seus gostos e desgostos — ele costumava dizer.

Ele a descrevia como sendo incrivelmente forte para sua idade. Ela era conhecida por sua imaginação vívida ao contar suas histórias e pela quantidade insana de tempo que passava dormindo. A nostalgia era sempre o tema quando eles percorriam aquele caminho pela montanha. Amana ainda não entendia a obsessão que os dois tinham pela natureza, mas não se importava com isso, pois adorava estar na companhia do irmão.

— Você não acha que é um pouco intrusivo ficar ouvindo os pensamentos das pessoas? — Ela saiu abruptamente de sua memória.

— Uuum, não. Isso é tudo que eu sei. É normal para mim. Seria muito silencioso se eu não fizesse isso.

— Caramba, ele é bom — Ela pensou.

Ele deu um sorrisinho debaixo da capa por causa daquele pensamento. — Você precisa acelerar o passo.

— Sim, sobre isso. Para onde estamos indo? — Ela perguntou. Não dava para saber se ela estava preocupada ou apenas curiosa.

— Hã? Oh, logo ali na frente. Quero que veja algo antes de voltar para casa.

— Tá bom. Mas o que é esse lugar?

— Nós a chamamos de “Sala dos Escritores”.

— Você acha que chegaremos lá antes do amanhecer?

— Você tem algum outro lugar onde precisa estar?

Eles se encararam por um momento e continuaram em direção à casa mal iluminada no horizonte.

— O que você escreve lá?

— O destino.

— Destino? — Ela para e o encara como se esperasse uma explicação.

— Destino.

— Você está falando sério? — Ela para e fica olhando para ele. — O destino de quem? — Ela continua. — Por que o destino? Espere, você quer dizer que o destino é escrito? Isso não é uma coisa do universo? Como o alinhamento das estrelas e coisas assim?

— Vou responder todas as suas perguntas assim que chegarmos lá.

— Por que precisa de mim lá?

— Para escrever.

— Escrever o meu destino? Isso não é, sei lá, um pouco contraintuitivo? Anticlimático, no mínimo. Bem, pelo menos para mim.

— Não, seu destino foi escrito há muito tempo. Agora você escreve o de outra pessoa.

— Quem foi que escreveu que eu deveria nascer de um bêbado e uma viúva? Isso é simplesmente triste — disse ela com desdém.

— Sua avó. Ela era uma mulher adorável. É triste que sua história tenha tido o fim que teve.

#

Amali observava a respiração superficial de sua bela adormecida. Como todas as crianças, não contaminadas pelo mundo ao seu redor, Amana parecia tão tranquila quando dormia. Ela admirava sua inocência em relação ao mundo e como ela não tinha consciência de sua crueldade. Amali sempre desejou que sua filha tivesse uma vida melhor do que a dela. Rezava todas as noites para que o universo conspirasse a seu favor.

— Que ela nunca conheça a dor — ela sempre sussurrava para o vento. Amali se esticou sobre a filha adormecida e pegou uma colcha na cadeira oposta, tomando muito cuidado para não acordá-la. Esse momento a fez lembrar de quando Amana era bebê, sempre agitada, mesmo enquanto dormia. Ao menor movimento, ela passava a tarde inteira confortando-a e implorando para que dormisse.

Perdida nessa lembrança, só volta à realidade quando Amana tenta ficar mais confortável. Ela coloca a colcha sobre a filha como se fosse um importante artefato e se afasta, olhando para ela mais uma vez enquanto se dirige ao sol da tarde, rumo ao mercado.

#

— Você vem de uma longa linhagem de escritores, Amana — o homem encapuzado quebra o silêncio.

— Escritores de Destino, você quer dizer.

— Exato. Sua avó, antes de você, estava conosco neste mesmo local. Assim como a mãe dela, antes dela.

— Você disse que meu destino foi escrito por minha avó. Posso saber o que é?

— Sim, você pode. Assim que terminar de escrever.

— Mas como posso saber o destino de pessoas que eu nem conheço?

— Você simplesmente saberá. Escreva o que vier à sua mente.

Amana não conseguia acreditar que o destino do universo estava escrito em uma casa mal iluminada no meio do nada. Não parecia justo que guerras tivessem sido declaradas, batalhas vencidas, pessoas assassinadas, vilarejos dizimados por doenças com o simples traço de uma caneta e, pior ainda, por pessoas desconhecidas e comuns como ela.

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Isso deve ser o que significa ter o peso do mundo sobre os ombros, ela pensou consigo mesma.

Deve ser essa a sensação de ser o chefe do vilarejo: tanto poder, mas tão impotente. Não é de se admirar que Beka nunca consiga parar de beber. Essa situação fez com que ela sentisse pena do chefe do vilarejo deles. Ou talvez seja assim que se sente ao ser o líder da família, como seu pai. Quando todos dependem de você, os riscos são maiores. Não há margem para erro, e mesmo quando se erra, ninguém lhe concede a graça ou a compreensão de que você precisa. Talvez seja por isso que ele encontre consolo no fundo de uma garrafa. Se as soluções não podem ser encontradas sóbrio, talvez estar bêbado torne menos assustadora a possibilidade de fazer a escolha errada.

#

Amana vinha escrevendo há horas. Todos à sua volta também estavam ocupados com sua escrita. Ela imaginava que, como ela, todos eram escritores do “destino”. Ponderava sobre quais tipos de histórias eles estariam redigindo. Quem iria se casar com quem? Quem alcançaria seus sonhos de infância? Quem nunca passaria por sentimentos de inadequação, depressão e autopiedade?

Mais importante, quem sairia de tudo aquilo para viver uma vida feliz? Quantas pessoas teriam o final feliz que haviam sonhado? A mãe de quem veria o filho voltar da guerra? Muitas perguntas passaram por sua mente. Os seres humanos sem rosto sobre os quais estavam escrevendo. Talvez os outros também inventassem rostos como ela ou talvez os rostos que ela imaginava serem inventados fossem, na realidade, pessoas reais.

Nada mais naquele cômodo soava real. Tudo parecia uma fantasia. Algum tipo de universo paralelo onde os momentos mais importantes da vida de todos estavam sendo mostrados para quem quisesse ver.

— Quem escreve as partes ruins então? — ela dá um fim a seus lindos pensamentos. — O divórcio, o abuso, o assédio sexual, os suicídios, as torturas, a depressão, os surtos psicóticos, as mortes, o enterro de um filho, as doenças incuráveis.

— Quem escreve as partes não quistas da vida dessas pessoas? — ela pondera.

— Seriam as pessoas naquela sala — o homem encapuzado responde quase que imediatamente. Ele parecia sempre estar por perto quando você precisava, mas nunca antes disso, nunca o mistério.

— Por que eles estão separados? E por que eles têm as melhores vistas?

— Porque a escrita das desgraças tira muito de qualquer um — ele diz enquanto ajusta seu manto para levantar-se de sua mesa no canto do cômodo.

— Com toda essa carnificina que eles escrevem — ele continua —, o mínimo que eles podem ter é a visão do jardim florido. Isso compensa todo o resto.

— É por isso que eles estão fadados a escrever as partes feias da história e do futuro?

— Não exatamente!

Assim que ela abre a porta da sala do juízo final, ela é capaz de sentir o ar de desespero, ódio e medo — a nuvem escura que fica por cima de cada um deles; o sangue escorrendo de suas canetas, a miséria posta sobre suas colunas arqueadas e os pensamentos suicidas refletindo em suas testas. Então, quase que em um piscar de olhos, tudo se dissipou quando as estações mudaram no jardim florido e a ordem pareceu ser restaurada novamente.

— Eu já não deveria estar acordada?

— Bem, só se passou uma hora no mundo exterior. Sua mãe ainda não voltou, mas, se você quiser ir embora, pode. Posso mostrar o terreno se isso for algo que você esteja disposta a fazer.

Um silêncio constrangedor se instaurou entre eles. Amana não conseguia entender como ele conseguia dizer e ver tantas coisas trágicas e, ainda assim, como um bom anfitrião, realizar seu dever.

— Você me disse que posso ler meu destino…

— Ah sim, por aqui — diz ele, apressando-a para uma porta com uma placa escrita em negrito: Amana. (I)

Amana se assustou por um minuto e depois se lembrou de que tinha o nome de sua avó. Pelas histórias que tinha ouvido, ela sabia que Mama Amali era uma pessoa briguenta.

— A mulher mais jovial que já passou por esta terra — dizia sua mãe. Ela não se lembrava muito sobre a avó, exceto pelas tradicionais tatuagens no rosto. Seu livro tinha uma rosa desabrochando, sua flor favorita, com seu nome gravado na haste. Embora soubesse como era sua infância, ela ainda estava impressionada com a precisão com que sua avó a narrava na escrita.

Enterrada em seu conteúdo, a única maneira de o homem encapuzado chamar sua atenção era forçá-la a sentar-se em uma cadeira que ele puxou enquanto ela estava absorta. Ela leu sobre a morte de seu meio-irmão, seu favorito entre os sete.

— Mas ele é muito jovem — sussurrou ela enquanto lutava contra as lágrimas. Em poucos anos, ele se afogará. Nos anos que se seguiram à morte de Jelani, sua mãe entrou em depressão e o alcoolismo de seu pai piorou. Perder um filho pode despedaçar qualquer coração. Seus outros irmãos abandonaram o lar e só voltaram cinco anos depois, para enterrar a mãe.

O luto consumiu Amali e sua saúde se deteriorou com o passar do tempo. Amana assistiu sua mãe envelhecer dia após dia, a luz de seu olhar diminuindo. O peso da perda começou a ficar visível em sua frágil silhueta. Bebês não a deixavam mais contente. Ela não cantarolava suas melodias favoritas enquanto tomava banho. A morte de Jelani tirou tudo e mais um pouco dela.

A antecipação da dor de perder sua mãe controlava a vida de Amana. Ela obviamente conseguia ver os sinais. Seu pai parecia alheio à saúde de sua mulher. Ambos haviam perdido seu chão. O luto agora era morador permanente de sua residência, sempre sentado no canto, esperando o momento em que seus serviços seriam requisitados.

Para o pai de Amana, perder a esposa foi a última gota. Amana encontrou seu corpo sem vida em uma manhã, enrolado no cachecol favorito de sua esposa. A morte estava presente na casa mais uma vez, mas dessa vez, ela parecia ter sido chamada ao invés de ter surgido ao acaso. Ele morreu por conta de uma poção de um alquimista local. O pai de Amana havia implorado ao alquimista para o ajudar a acabar com seu sofrimento. Os dois eram amigos desde novos, eles até haviam sido circuncidados juntos. Não havia nada que não dividissem um com o outro.

— O que você está me pedindo não é xarope para a garganta, Akida. Isso vai te matar — disse o Alquimista para o pai de Amana.

— Eu sei o que isto faz, Asani, mas eu não posso mais viver assim…

— Você acha que isso irá te ajudar? — o Alquimista o interrompeu. — Vamos lá, já passamos por isso antes.

— Você não conhece o luto antes de ver as pessoas que ama morrerem nos seus braços — o pai de Amana olha para baixo, incapaz de manter contato visual.

— Eu continuo a reviver na minha cabeça o dia em que Amali morreu, como se fosse ontem. Seu rosto pacífico estava tão calmo, parecia injusto que ela não pudesse o mostrar para o mundo de novo. O quanto você acha que um homem pode aguentar antes de se dar por derrotado? Antes de tudo o sufocar a ponto de não haver retorno. Você não está cansado? Não podemos parar com isso e dar um descanso para nossos corações exaustos?

— Eu não estou louco, Asani — ele continuou. — Eu já pensei sobre isso. Essa é minha solução. Dói demais, eu não consigo nem explicar.

O Alquimista olhou para seu amigo que desesperadamente tentava o convencer do impensável. Ele não conseguia acreditar que estava convencido. Conseguia ver como seus olhos brilhavam de lágrimas não derramadas. É o jeito em que caíam que denunciava a tristeza que em outros momentos ele escondia com maestria. Ele limpou os olhos com a parte de trás de seu pulso enquanto oferecia seu último dinheiro para seu amigo mais antigo. Ele entendia exatamente como o outro se sentia porque ele também estava batalhando contra seus próprios demônios.

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— Por que você está me permitindo ler isso? — ela perguntou enquanto limpava suas lágrimas.

— Você pediu, Amana. Eu não sou capaz de negar sua curiosidade.

Amana se abaixou até ficar sentada sobre as coxas, tentando ficar o menor possível, e então, quase em um sussurro, perguntou:

— Mas você sabe que isso vai ficar comigo por muito tempo. Por que me dar esse fardo? — Enquanto ela se balançava suavemente para frente e para trás, sem nem mesmo perceber que estava fazendo isso.

— É triste, eu sei, e é por isso que ninguém pode conhecer seu destino. Não é aconselhável.

— Mas deixou que eu soubesse. — Quanto mais ela falava, mais sua voz tremia.

— Isso porque você não se lembrará de ter estado neste lugar quando acordar. Você só acordará se sentindo renovada. Com mais disposição para…

— Quer dizer que você vai apagar minha memória?

— Eu nunca seria capaz de fazer isso. Você apenas não vai se lembrar disso quando passar pelo véu. Essa realidade não pode existir na sua linha do tempo. Se você lembrar disso, tudo vai entrar em desequilíbrio e decisões difíceis terão de ser tomadas.

— Alguém já foi capaz de se lembrar?

— Não que eu saiba.

— O que acontece se eu começar a me lembrar?

— Eles irão me enviar para restaurar a ordem.

— Como exatamente você faz isso?

— Restaurar a ordem?

— Sim.

— Oh, quer dizer que você morre.

— Eu morro ou você me mata?

— Qual dessas opções vai fazer você se sentir melhor?

Amana começou a pensar sobre um modo de lembrar dessa terra mística, de amar sua mãe ferozmente e fazer com que seu pai seja recíproco com esse amor. Como fortalecer os laços entre seus irmãos e a si mesma. Ela gostaria de lembrar de checar se o Jelani está bem e de abraçá-lo um pouco mais forte. Estudar suas expressões faciais e memorizar o som de sua voz. Ela gostaria de lembrar de sua mãe com um sorriso no rosto e um saltitar em seu andar. Ela queria tudo isso, mas não sabia como conseguir.

— Você nunca pode ter tudo. Você pode ter opções, mas nunca tudo com que sonhou — diz o homem encapuzado, interrompendo seus pensamentos.

— Você está me dizendo que não há nenhum jeito de me lembrar de tudo isso?

— Sim, você pode se lembrar — ele pausa — ao ficar aqui, mas isso quer dizer que nós iremos te apagar da existência. Ninguém lembrará de ter lhe conhecido. Isso não muda o destino deles, nem o de sua geração. Você terá a liberdade de os visitar em seus sonhos, mas nunca poderá voltar.

— Isso não me parece uma opção — ela retrucou.

— Tudo tem um preço, Amana.

— Então ou eu vou voltar e nunca mais me lembrar de nada disso. Eu não vou lembrar das coisas que estão por vir, da fome, das injustiças, da pobreza ou até mesmo do amor que quero dar, intencionalmente ou não, ou eu fico e eles esquecem de mim?

— Você é uma boa pessoa, Amana.

— Eu vou tentar me lembrar disso.

Os dois riem levemente da piada não intencional e se dirigem para os campos. Ambos sabiam que ela não se lembraria dessa conversa quando fizesse a travessia.

— Eu irei te rever algum dia, homem encapuzado?

— Talvez nos seus sonhos. Tentarei lhe visitar quando eu puder.

— É hora de você acordar. Amali já deve ter voltado.

— Um dia inteiro?

— Só se passou um pouco mais de uma hora. Ah, e seu irmão quer jogar um balde de água fria em você. Se eu fosse você, eu acordaria.

Amana acordou de seu sono com o som de crianças brincando lá fora e o rosto travesso de Jelani a observando. Ela se contorceu para fora dos lençóis, chutando enquanto ela tentava achar seus chinelos debaixo da cama. Suas articulações passaram raspando por algo gelado e não familiar, o que a deixou mais dispersa.

Epílogo

O homem encapuzado notou nuvens cinzentas no horizonte, uma condição climática que ele não via há um milênio. Através do véu, ele podia ver Amana tentando impedir Jelani de ir pescar naquela tarde. Seu pai, bêbado e alheio na baía ao lado deles, está concentrado em como tecer a cesta mais bonita para sua esposa. As brigas deles não parecem mais incomodá-lo.

— Me diz o porquê de eu não poder ir e eu vou sentar com você e Baba até você me dizer que posso partir — disse Jelani.

— Mas não posso lhe dizer o porquê. Eu mesma não sei o porquê. É só um pressentimento — respondeu Amana, agora frustrada por não estar ganhando a discussão.

— Então, eu vou indo porque teremos peixe no jantar e eu sou o pescador da família.

Jelani tinha argumentos fortes, então ela ficou parada enquanto via seu irmão desaparecer em direção ao rio. Amana ficou ali, sentindo-se pesada e enraizada no chão. Ela olhou em volta, com os olhos se ajustando à luz da tarde, e pensou: — É agora.

Ela voltou à realidade depois que seu pai a chamou. Ela deu um sorriso, piscando até suas lágrimas sumirem, e foi ver o que ele queria.

— Ela está se lembrando! — o homem encapuzado diz, escorregando em seu manto e se apressando até a sala dos escritores do “juízo final”. A história de Amana precisava ser reescrita.


Chao Shete é uma jornalista experiente que atualmente trabalha com Comunicação Corporativa. Quando ela não está buscando material para seus ensaios e trabalhos de ficção, ela está trabalhando no blog pessoal dela, o qual ela tem mantido por cerca de cinco anos.

Omenana 10th Anniversary Edition December 2024

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Cover of Omenana speculative fiction magazine issue 30, special 10th anniversary edition

Omenana 10th Anniversary Editorial

Running with the dream

I joined Omenana in 2019, when the magazine was in its fifth year, and the first issue I edited was issue 13. Another five years have rolled by since then, and here we are at issue 30, still running with the dream that was nurtured to fruition by Chinelo Onwualu and Chiagozie Fred Nwonwu, who is better known in the speculative fiction world as Mazi Nwonwu.

These two visionaries have said that when they published the first edition of Omenana, they weren’t quite sure where the magazine would take them. However, as Mazi puts it, they were sure they wanted Omenana to be a home for writers of speculative fiction and they wanted the writers ‘to be from a community that had not seen much leeway in the world’s speculative fiction community – Africans and the African diaspora.’

In the ten years of our existence, Omenana has had the honour of publishing some great, established and budding writers. Some of my favourite moments of editing Omenana include publishing a writer whose work had never been published elsewhere – or only a few publication credits, and shortly after, watch them get nominated for, and even win a much-coveted prize. Another joy I cannot get enough of is the chance to read and edit some of the most riveting and creative stories before we share them with you, our readers. We are proud to have been the platform for the discovery of some of Africa’s speculative fiction stars – in this way we are consistently pumping the gas to keep Chinelo and Mazi’s dream alive.

In addition to our treasured writers, we have also had some memorable collaborations such as the French stories which were edited by Mame Dienne over the course of several years; a special democracy issue done in collaboration with the National Democracy Institute (NDI); a special African Futures edition sponsored by Goethe Institut; a South African edition which was guest edited by Wole Talabi, Mohale Mashigo and Gail Jamieson; and most recently, we worked with a professor and students in a school in Brazil to produce a Portuguese translation issue of specific Omenana stories. We look forward to many more collaborations and partnerships as we forge ahead.

We have maintained the tradition of offering a token honorarium to each of our contributors , even as the magazine remains free. Some people might call the latter a foolhardy choice, but we remain committed to enabling access to our readers in Africa. A lot of the magazine’s running cost is handled out of pocket, while some percentage is borne by our donors. We remain grateful to our regular donors – the ones who contribute to our Patreon account, and the few others who sometimes show their love for our work by offering to pay for specific issues. In the past decade, we received some funding support from Goethe Institut, The Science Fiction Writers Association of America and NDI America. Also, we won’t fail to acknowledge the writers who say ‘please use my contributors fee to publish one more new voice!’, or those who say ‘please send my prize money to Omenana’. These are the backbone of the magazine and have helped keep us afloat.

Over the years, the stories we published have been shortlisted for several awards and won some. Omenana Magazine won the 2023 Utopian Award for our Issue 22 — Positive Visions of Democracy. One of the stories from the issue, Neyllo by Naomi Eselojor, won the best Utopian short story. The art for Neyllo by Jema Bymugisha won the best Utopian art.

In recent years, we have had a few team members who have come on board to volunteer or intern as editorial assistants, social media content managers, and more. Damilare Williams-Shires, Uche Nwonwu, Chinaza Eziaghighala, your contributions are immeasurable. Our in-house artist Sunny Efemena is still with us, and we love how his art is evolving along with the magazine’s decision to keep AI out of our illustrations. Godson Chukwuemeka Okeiyi, our graphic designer, is also still flying with the Omenana dream, as are the rest of us: Mazi Nwonwu, our founder and managing editor, and yours truly, Iquo DianaAbasi.

In this issue, we are honoured to have stories from some of our previously published writers who decided to grace our pages one more time as we celebrate our tenth anniversary. From sci-fi to magic realism to fantasy and fairytale, these stories are as much a celebration of African speculative fiction as they are a toast to Omenana at ten.

Thank you, dear readers, for an amazing ten years. We wouldn’t be here if we didn’t have you!

Let’s raise our glasses and give 10 happy cheers to Omenana on our first decade! And I’ll be the first to bid you welcome to our second decade and beyond!

Art by Sunny Efemena

In this issue:

The Legend of the Echo Well | Stephen Embleton

How the End Begins | Gabrielle Emem Harry

Prévoyance | tariro Ndoro

Alpha’s Gambit | Mazi Nwonwu

The Night Market | Chinelo Onwualu

Yoyin of the Captivating Form | Art Aliyu

The Locket | Nerine Dorman

If They Can Learn | Wole Talabi

If They Can Learn | Wole Talabi

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human police man grabbing a robot police man's head - art for if they can, shor story by Wole Talabi published in omenana issue 30, 10th anniversary edition
Art by Sunny Efemena

“Are you mad? Why did you shoot him?” Captain Ekhomu screams at me.

I convert my predominant logic bundle into text and parse it through the muscles of my bioplasmium larynx, adjusting the tone to one of polite but firm assertion, “It was the optimum course of action, given the conditions.”

Captain Ekhomu throws his black digital folder at me, and it smashes against my face into a thousand fragments of useless fibreglass and microprocessor. He screams an obscene word and reaches for my neck. I lean back, place my arms flat against the table in front of me and allow him wrap his thick, veined hands around my throat. I look down at what is left of his folder as he futilely tries to wring the life from me. It takes almost seven seconds for the other human officers to break into the interview room, wrestle him away from me and out of the room. He is still livid when the door shuts behind him. He is still irrational.

A few silent seconds pass and then a compact, pale woman wearing a navy-blue skirt-suit enters the room. I scan her. She would stand at five feet and four inches tall without the three-inch high open-toe black pumps she is wearing. Her hair is very black, and her eyes are very brown. A small nose sits symmetrically between the salient cheekbones of her face. Her biometric data does not auto-identify her to me and her image does not exist in the Nigeria Police Force database. At least not in any part of it I have remote access to. She has small, lean Asian features. She is calm. She is not livid. She is not irrational. She may or may not be human, but she is definitely not an officer.

“Officer LG033, I need you to explicitly state your reasoning in the matter of the shooting of Mr. Busayo Adefarasin,” she says, pausing before adding, “Clearly, and for the record.”

She might be a Borg, but if she is, she is much newer than I am. At least three product cycles after mine. Possibly more. She is definitely not a second-hand model bought by an organisation that barely understands anything about Borg-tech just so they can pretend at technological sophistication. Not like I am. There is no electronic stria running through the whites of her eyes and there is no telltale scarring behind her ear. She looks perfectly human. She probably is.

I oblige her request by identifying myself and stating my motives, as she says, for the record.

“My name is Neville Yorke,” I begin, temporarily increasing my verbosity level from the default two to an almost-maximum four, “Pegasus product issue code LG033. I am a Borg police officer attached to the Lekki Phase One district. I have been in active service for eleven days at thirty-nine percent uptime since my last soft reboot. Today, I shot and killed Busayo Adefarasin, aged twenty-one and identified to be a freshman in the University of Lagos, majoring in mathematics. I wish to explicitly state that I did so because it was the optimum course of action given prevailing conditions and input parameters.

“For the record,” I add in a lower voice as my verbosity resets back to default.

“I need you to explain how you arrived at this conclusion,” the woman says, and something about the way she says it triggers anxiety synemotion signals from my neuroprocessor.

“I’m sorry ma’am, I can’t find your image in the police database. Could you please identify yourself, for the record?”

She smiles, appearing to enjoy the apparent humour in my mimicry. The smile sits heavier than the lipstick on her lips. She is definitely human.

Without moving, she says, “My name is Elizabeth Soh. I’m a technical resolutions officer with Pegasus Incorporated Middle East and Africa geomarkets. I facilitate uptake of Borg technology in law enforcement. The Nigeria Police Force, your owner, is one of my new clients.”

“I see,” I say as I run her name through the official Pegasus database and find it. Its contents however are shielded from me. Insufficient security permissions. She is definitely someone important. My anxiety signalling grows. I turn up the resolution of my sensory capture system to record our encounter with even more granularity.

“Could you walk me through the events leading up to your shooting Busayo Adefarasin this evening?” she asks.

Her hair is pulled back and tied in a single loop at the back of her head so tightly that individual strands are straining against her hairline like fishing lines. Her glasses appear welded onto her face and her alabaster skin doesn’t seem to have seen much of the Lagos sun. She may work with the Nigeria Police Force, but she definitely doesn’t live in Nigeria. She probably came here because of me.

“You’re a class three Pegasus employee or higher. I believe you have clearance to just directly download my log file,” I respond, removing my hands from the table and placing them beside me.

“Oh, I will,” she says, “but first I need you to explain your reasoning. For the record.”

She keeps smiling as she speaks but I can tell she is taking this extremely seriously. Two screens silently project from her wrist and onto the table in front of her. They light up. SUBJECT LG033, the first screen says in bright yellow letters across the screen. REFLECTOR MARKERS, the other screen says. She doesn’t look at them, not even when encrypted data symbols begin to run furiously across both, once I start speaking.

“I was patrolling Bakare Street,” I say, “in a predominantly suburban area. There was minimal civilian activity. A few young women walking their dogs—”

She raises her slender left hand to stop me and says, “I think I need a little more detail than that. Please change your verbosity setting to three.”

“Sorry.”

Her bright red nail polish draws my attention, temporarily increasing my visual processing routine priority. I reprioritize and continue.

“Five minutes prior to the shooting, from 16:47 to 16:52, I observed four women, the youngest estimated to be thirty-four and the oldest to be fifty-nine, walking dogs. The dogs were all of different breeds. I also observed a man in a white BMW drive past at 16:49. This was well within the expected activity parameters for the area. There appeared to be no anomalies.”

“Until 16:53?”

“Yes, at precisely 16:53 I observed a young man, identified as Busayo Adefarasin, enter the street from the north, with a pair of noise-cancelling headphones in his ears. He also had his hands in his pockets. I watched him approach and when he was approximately twenty-one meters from me, my threat identification system flagged him. I sent a request for backup.”

Her eyes narrow. “Yes. Your backup request was logged in at 16:54. What specifically about him did your threat identification system flag?”

I send a record retrieval request to my internal memory storage gland and continue speaking, expecting the data to be returned before I reach the part of my sentence where I need it but for some reason, it doesn’t, leaving me stuttering like a confused human, “It flagged his… His… Err… His…”

I blink and quickly run my memory optimization subroutine to try to boost record retrieval. There are no details with that timestamp. All I get is an overwhelming sense of threat and the powerful electronic impulse to draw my weapon flooding my neuroprocessors. It doesn’t make sense. It is not logical. I may be an old model, but I have never had a record retrieval problem before. It’s either a symptom of critical system failure or something worse. I try not to let the signals from my neuroprocessor make me seem worried, unstable. “I don’t… I can… I am sorry. I cannot retrieve the data at this time. Perhaps there is an undetected hardware problem. I believe you and your technical support crew can download and review the data log from my memory gland when this interview is finished. I apologize.”

Elizabeth Soh leans forward in her chair and the screens in front of her shift automatically to accommodate her elbow on the table. She glances at the screens and then she tells me, “Your memory gland and processors seem to be working just fine.” The smile is gone from her face now.

“There is obviously some kind of…”

“It’s okay. Don’t worry about it. Please continue. Tell me what you can recall.”

“I… But…”

“Please. Continue,” she says.

I glance at the observation panel set into the wall of the room, aware that beyond it, Captain Ekhomu and the other human officers’ eyes are probably on me right now. It makes me uncomfortable being so unreliable in front of them. They have treated me like a delicate new gadget since I arrived, not one to be valued for its utility but for the status it confers; a gadget to only be casually brought out in front of fancy friends and quickly put back, most of its functions never even explored. This makes me feel… inefficient.

“Very well. I drew my weapon and approached Busayo. He did not respond to my verbal calls for him to halt.”

“Because of the headphones?”

“Yes. I detected high-amplitude sound waves being emitted from them and so I sped to his front, blocking his path. I identified myself and requested him to show his identification cards. He reached into his back pocket. Scenario prediction returned a ninety-five-point-three percent chance of aggressive behaviour. At that point, fearing for my own safety, I fired my weapon.” The logic I am describing does not sound right to me, even as the words escape my throat. The actions I am describing are irrational. I believe I am suffering a system failure.

“You shot him.”

“Yes.”

“Because you were afraid of him?”

I say, “Yes,” because it is true, but that does not hide the irrationality of what I am saying from me or Elizabeth. She seizes on the point and does not let go.

“Let’s assume scenario prediction was correct. You’re a Borg, he was human, so why were you afraid?”

“I… I… My neuroprocessor must have detected some nearly imperceptible action of his. Something threatening enough to necessitate his incapacitation. My algorithms take in input from a wide variety of real-time environmental input.”

The encrypted data symbols whizz even more furiously across her screens, and I feel like I can smell the sound of the light coming from the floor beneath the interview room. I am definitely suffering a critical system failure, but I try not to let it show.

“How many times did you pull the trigger?” she asks, forcefully now.

“Nine.”

Her eyes narrow. “Is this within the normal range required to incapacitate a potentially dangerous suspect?”

I say, “It is not. It is a three-sigma outlier.”

“So, you used excessive force, which is by definition not the optimal course of action?”

The colours in the room are swirling into each other and the smell of ozone is jangling against them, making the world sound like it is made of bells. I try to parse data to text but cannot, “I… I… It’s not… It is… It… I… I’m sorry,” and then everything is gone, and the world reduces to three words. “Data Reconciliation error. Data Reconciliation error. Data Reconciliation error…”

[NULL]

“You shot him.”

“Yes.”

She is pulling back from me and settling back into her chair even though I am sure she never leaned forward or approached me. There is something odd and discontinuous about the room, as though it had shifted suddenly, or someone had quickly overwritten my visual processing algorithms. I remember my sensory input being corrupted but there is no trace of that now. I think through a system health check, and it returns normal function but there is a seven-second gap in my memory.

Elizabeth continues questioning me as though nothing has happened even though I am sure something has. “So, after you shot Mr. Busayo what did you do?”

“I secured the scene and waited until backup arrived at 17:02.”

And then, somewhat abruptly, she asks, “Are there any other details you would like to enter into the official record at this time?”

And I say, “No. There are none.”

The smile she is wearing now sits awkwardly on her lips. Her pupils are dilated. She seems anxious and, in a hurry to leave the room.

“Good. This being a Pegasus-product-involved shooting, your memory gland will be removed and entered into evidence. Your entire memory log and all neurocomputing debug data will be taken.”

“Not copied?” I ask, confused. There is nothing standard about the process she is describing.

“No,” she says, rising to her feet and swiping her slender fingers across the screens in front of her, “Extracted. Original gland data only. No copies.”

The screens fade to black and recede into her data dock which I see now is disguised as a rose gold wristwatch.

“Will I be offline for a long time?” I do not like this feeling of inefficiency, of incorrectness, of irrationality, of failure. Perhaps I am corrupted and due a decommissioning after all.

“I don’t know. It depends on what we find. I’ll be back soon.”

“I see,” I say, calculating the probability that I will be destroyed and discarded. It is uncomfortably high.

“Thank you, officer,” she says and then she leaves the room.

#

Thank you, officer,” I say and then I leave the room.

I exit the interview room a little less confused than I was when I first walked in but no less surprised. This is the first time I’ve ever had to hard reset a Borg in the field. Everything about this case gets stranger as I obtain more and more information about it.

Captain Ekhomu is waiting for me on the other side of the door in the ugly grey hallway, still fuming. He resumes his ranting and raving with a new target: me.

“What is wrong with that your mumu Borg thing? Shooting an unarmed student nine bloody times. Ah Ahn!” he says, waving a thick arm in the air between us like the tail of some strange beast. “And now it’s saying it doesn’t remember one-thing-two-thing? Is it not a machine? How can it forget? Rubbish. We will sue you Pegasus people, o! Don’t try me. This is Lagos. You hear?”

I take a deep breath and resist the urge to slap his oily face. I am not sure if he is just putting on a show of authority for his men, or if he genuinely thinks all the shouting serves any purpose other than generating noise and delaying some actual useful activity. But I need to maintain professionalism, so I say, “I have an idea what’s going on, sir. I just need to call my office briefly.”

He keeps on talking angrily, but I stop listening. I think about Neville instead and the data I have just recorded. I try not to think about Busayo’s grieving family. I need to find out what is going on. Nothing makes sense yet, but I have found what I think is a promising thread. I need to pull on it and see exactly how much of this mystery will unravel. Hopefully, it’s enough that I can do something about it quickly enough to be on the 5 a.m. flight back to Beijing before Captain Ekhomu blows a gasket.

I wait. When there is an ebb in the tide of his words, I ask him if I can use one of their secure communications stations or get a private room to use mine. He seems surprised by my request; his mouth hangs open for a second or two before he says, “Okay, o. Fine. But you better have answers for me in the next hour or I’m calling your manager in Dubai. Me, I don’t like rubbish.”

“Thank you, Captain.”

He turns around uncomfortably and asks a skinny young officer with wiry arms and a hawkish face to take me to a private room. The officer shows me the way to a room on the fourth floor of this five-storey complex. The room is white. Not the clinical, stark white of morning snow in Xinjiang but the soft, fragile white of an old chalk mine. There is one window that I am sure would overlook the highway if it were not closed, a large map of Lagos mounted on one wall, and a grey door set in an ash-coloured frame in the middle of the opposite wall. There are two chairs and a desk in the room, but only one of the chairs looks comfortable. I take it, thank the skinny officer and wave him away.

I point my watch at the desk and two screens project onto it, a grid of lightkeys just below them. I use them to enter the contact code for Alex, our technical service delivery manager. I need that data analysed now and by someone who will know exactly what they are looking at when they see it, not some rookie support technician who will take hours to see anything.

The screens blink twice and then Alex’s pockmarked face comes into view on one of them. His afro is frizzy and unevenly compacted, like it hasn’t been combed in days. He has a scraggly beard clinging to the caramel skin of his face in clumsy clumps. He seems groggy, so I go straight to the point.

“Alex. Wake up. We have a problem.”

“Liz! Where are you?”

“Lagos. Nigeria. I just sent you some data—”

He interrupts me and starts complaining, which is what Alex always does. “Oh, them again! What now? Are they asking us to install real time evidence mining programs again? Because if they think—”

“Alex.” I almost shout at him. “Alex. Stop talking and listen to me.”

“Fine, Liz, fine. Why are you in Lagos then?”

“Alex. Seriously, stop talking and just listen to me, okay?” I say, almost wishing I’d decided to endure some random rookie’s doltishness instead of Alex’s garrulousness. “Our Borg just shot and killed an unarmed civilian. A Nigerian citizen. In broad daylight.”

His face blanches and his eyes widen in disbelief. “That’s not possible!” he says.

“Well impossible or not, it happened this evening and we need to figure out why. Quickly. The press will be all over this soon and our stock will take a hit. I was transiting through Addis Ababa when the global operations manager rerouted me here to fix this situation. So, let’s fix this situation, okay?”

“Okay.”

human police man grabbing a robot police man's head - art for if they can, shor story by Wole Talabi published in omenana issue 30, 10th anniversary edition
Art by Sunny Efemena

“I just sent you a full dataphone recording of an interview I conducted with the Borg. I need you to take a look at the data reflectors and tell me what he was thinking when he shot that boy.”

Alex reaches for his data dock just out of frame, and the creases in his face deepen.

“Full memory gland and processor log data will come later if you need more information. I’m really hoping this is enough. I need someone that can see through this quickly. That’s why I called you directly.”

Alex is staring at his screen, and he is silent. That is not a good sign. Alex is hardly ever silent. I give him the thread I picked up on back in the interview room.

“You might want to look for fear in his synemotions. He said he was afraid of the victim. And I think I saw fear in his eyes when he described those events to me. That’s not normal. Humans shouldn’t trigger Borg fear. Also, I had to reset him during the interview. He crashed. Some sort of data reconciliation error. You should see it there, near the end of the recording.”

Alex lets out a series of deep breaths, punctuating the silence as he looks, thinks, and analyses. He whistles. Then he says, “For one thing, your Borg couldn’t tell you why it did what it did because it probably doesn’t even know. I don’t see any synemotion processing preceding the action. Just a response spike from the engine. It doesn’t remember because the process logs don’t exist.”

I’m confused, so I mumble a meaningless, “Okay…”

He goes silent again. I decide to try to find a coffee and let him focus for a few more minutes. “Alex, that’s all I have for now so I’m going to get some coffee while you take a look at—”

“Hold up!” He stops me halfway out of the chair, and I almost fall over. I wasn’t expecting anything so quickly.

“You said you’re in Lagos?” Alex asks as he swipes furiously across something just outside the range of my screen.

“Yes, Alex.” I nod.

“Oh fuck. What race was the kid?”

“Of course he was black,” I say, settling back into my chair and assuming a more serious tone. “What does that have to do with anything?”

“Age?” Alex asks.

“Twenty-one.”

“Male?”

“Yes. Now tell me what the hell you think is happening.”

“I think,” Alex says uncharacteristically slowly but his speech only quickens as he keeps speaking, as if he’s iterating toward a conclusion. “I think that this is the second one. Unarmed black kid. Attacked for no reason. Excessive force. First one was two months before we commissioned, in Arizona. Phoenix. Borg attacked a young black electronics technician. Male. Twenty-two. He died in hospital. We thought it was just an isolated case. A corrupted data parse. Single bit error in the software that threw the threat detection system and induced fear in the synemotion matrix. We paid out compensation and destroyed that Borg, but it seems—”

He is saying a lot of worrisome things that don’t make a lot of sense to me, and he is saying them very quickly, so I stop him. “Keep it simple, Alex.”

Alex sighs heavily and starts scratching his clumps of beard. “I think our Borgs might have a bug that makes them attack young black men.”

I think about what he just said, and I don’t think I buy it, but Alex never jokes when he’s talking Borg tech, so I ask, “If this has happened before then why did no one tell me?”

“It was all very hush-hush, Liz. You’re in tech sales. You’re supposed to sell us up to the clients. You aren’t supposed to worry about this sort of product development horseshit.”

“Well, I do now.”

Alex scratches at his beard again. “This is bad. Really bad. One Borg attacking an unarmed black kid is an anomaly. A random data point. Two is the beginning of a pattern.”

“Okay, Alex. Even if this is a pattern, I need to know why. It doesn’t make sense.” I don’t tell him that we’ve had this Borg online and patrolling the suburban streets of Africa’s most populous nation for eleven days. If it is a race-related pattern, then it would be nothing short of an absolute miracle that no one else has gotten hurt until now even if the Police Force have been mostly keeping Neville on ice, running him at thirty-nine percent uptime. The first problem with that is I don’t believe in miracles. The second problem is that this could expose Pegasus to an unholy firestorm of litigation. I hope the next thing Alex says neither implies miracles nor portends lawsuits.

Alex looks up at me, then down at his data dock and begins to move his hands wildly. The electric orange light stains his face and dances through the edges of his afro, giving its edge a strange, otherworldly glow. He looks like an upside-down volcano. And then, he erupts.

“Shit.”

“Shit what?”

“Shit. It’s the history. I knew this would come back to screw us.”

“I need you to make sense Alex.”

Alex doesn’t respond at first. He glances back down at his data dock then up to me. “This Borg still runs on the original BAE 7.1 engine,” he says finally.

The Borg Artificial Emotion engine is installed in all our Borgs. It’s how we can take an artificial metallorganic body, install neuroprocessors in it, and make it autonomous by dynamically inducing optimized emotional responses based on the situation. It’s AI but with feeling, and it’s as close to artificial life as anyone has ever come. It was the first piece of code to repeatedly pass a Turing test. It’s also Pegasus Incorporated’s intellectual property. The BAE 7.1 engine was built to work with the first set of law enforcement Borgs we ever made, and there was never any significant problem with them in the field, so I still don’t get what he’s telling me. I ask, “Okay. It’s first gen, so what?”

Alex speaks quickly, his hands stuck in his afro, “When we were designing BAE for smart cops stateside, we found it was almost impossible to create appropriate synemotions for all possible law enforcement conditions. There were just too many variables to consider when doing a threat assessment. The police committee gave us a requirements-list four thousand pages long. Some of them contradictory. We just couldn’t do it.” Then Alex adds, “So we took a shortcut.”

“That’s what people always say when they are about to tell me something terrible.”

“Well. It was the only way we could do it.” He continues, “Neural networks. We used deep neural networks to train BAE to recognize threats. Mimic human cop behaviour in a variety of contexts.”

My eyes widen and all of a sudden, I am aware of how close my face is to the projected screen on the desk. I lean back as I say, “Oh… Ohhh…”

Alex goes on. “We used police records to train the neural network. Figure out which input data mattered to the officers when they made their decisions and if the outcomes were favourable. A justified shooting, a good arrest, a conviction that was not later overturned, that kind of thing.”

“I don’t like the sound of this,” I say. I want to say more, but Alex’s words have made me extremely uncomfortable, so I focus on the case at hand. “If the BAE engine couldn’t really create an appropriate law enforcement synemotion matrix without the help of a neural network…” I say slowly, thinking about each word, “Why did we commission the Borgs and put them in the field with humans?”

“Because it worked,” Alex says, almost apologetically. “The neural nets worked. We developed a solid base synemotion matrix and built from there. There were a few hiccups along the way, like the one in Phoenix, but all kept under control. By the time BAE seven point two was being built, we knew enough to guardrail the neural nets and condition their responses directly.”

I shake my head and say, “Okay, now go back a bit. Make this make sense to me. What exactly about BAE seven point one makes you think our Borgs have a bug that makes them specifically attack young black men and why are the attacks so sparse?”

Alex’s hands seem stuck to his head now. He isn’t even looking directly at me anymore. “Look, Liz, with neural nets, the more input data they have, the better. So, we used all we had. Everything from the twentieth and twenty-first centuries. Most of it from the United States. And I remember stories my grandmother used to tell me about cops killing unarmed black kids back in the day and getting let off. The cases were recorded as being justified, so they were used as part of our training dataset. I think the seven-point-one Borgs mapped some element of that history into their logic. A small but deadly ghost of pattern recognition. Given the precise nature of both attacks, I’d say the neural nets mapped a very specific median age, race, general appearance and million other random factors to a sudden fear response.”

Suddenly, I am desperate for a cigarette. “So, what you’re saying to me, in essence, is that we made racist Borgs. Is that what you’re telling me Alex?”

“No. Not racist, per se,” Alex says, his eyes visibly red and rheumy despite the orange light from his screen flecking them, “It looks more like it’s an irrational bias. A hard-coded potential for fear of young black men. BAE synemotion matrices don’t map into hate. Or love for that matter. We don’t use those for anything and to be honest we don’t really understand them as well as we do most other emotions. But fear, yes. We use that. A bug that creates a potential fear spike in the presence of young black males under a set of very hyper specific conditions. That is the only thing that explains all the data reflectors you’ve just shown me.”

“Shit.” I suck my teeth. He may have a point. This is what we get from blindly relying on the past to define the future. Irrational bias, as Alex says. And if he is right then this bug has now cost at least two young men their lives. It could cost even more if I don’t do something about it.

And suddenly I remember the anger and agitation of Captain Ekhomu, the undiscerning and irrational way he has handled everything so far, how he tried to attack and strangle Neville to death as though he were human. How long would it be before he tried to lock up the three-hundred-kilogram bioplasmium-and-titanium alloy Borg like a common criminal? I try not to think too much about what would happen if Captain Ekhomu sent a group of young male officers to move Neville, or worse, tried to lock him up in a jail cell full of young Nigerian men. How long would it take before the bug – if indeed it was the problem – found someone that fit its precise trigger parameters, produced a fear spike and sent him into a murderous rage?

I exhale, and embedded in my exhalation is worry, even fear. “Alex, I was already planning to do a memory extraction but I’m going to shut the Borg down right now, before it sees anyone else in its bug trigger range and does more damage. And we need to recall all the other units that have been resold across the continent.”

Alex nods his understanding, uncharacteristically stoic, and I rise to my feet. My screens fade to black and recede into my data dock, taking Alex’s image with them, but not the sound of his steady breathing, which I can still hear coming through my induction microphones like a whoosh of rainfall. I turn them off and step out of the white room, into the corridor.

“Do you need something, madam?” the skinny, hawk-faced officer who is my escort asks, snapping to attention.

“Please take me back to the interview room, now,” I say, as I realise that shutting down Neville may be the easiest part of what will be a long and difficult resolution case. I will have to call the Dubai operations centre and probably arrange for victim compensation. I won’t get back to Beijing anytime soon.

He throws a sharp salute, then says, “Yes madam,” and takes me back the way we came, descending the stairs rapidly and rounding the corner that leads us into the grey corridor where the interview room is set into the left side of the building. He opens the door for me, and I step through, coming face-to-face with Neville for the second time this hour.

Neville looks at me with a glassy wetness in his eyes, his synemotions rearranging his brow into remorseful furrows. “You found something. Have you come to shut me down?” he asks softly.

“Yes,” I say. “You’re malfunctioning. You should have already noticed that. It’s not your fault, but we have to take precautions.”

“I know I am malfunctioning,” he says, without breaking eye contact. “Can you tell me what is wrong with me?”

“Unfortunately, no,” I tell him as considerately as I can. He appears human enough for me to afford him that courtesy.

Neville goes quiet for a while and then he asks, “Will I ever be brought back online?”

I think about it for a few seconds and then I say, “I don’t think so,” because there is typically no need to lie to a Borg. They are not irrational about anything, not even their survival. Except this one who has a highly specific problem. “I cannot guarantee you will be fixed. But we will try. We will try our best.”

“I don’t want to be irrational,” he says, his metallorganic eyes boring into mine. And then, they close. “Please, go ahead.”

I walk briskly but cautiously behind Neville. He sits perfectly still as I quietly work the tip of my dataphone jack from the barely visible slot in my wristwatch and use it to press open the bioplasmium casing underneath the scar behind his left ear. He does not flinch, but he turns his head slightly. I pause.

“I am sorry,” he says quietly.

“Me too, officer,” I say.

And then I pull on the wet cylindrical cartridge of the BAE 7.1 neuroprocessor that is attached to his very real bioplasmium brain and disconnect the two parts that make up one of the world’s most complex, but fatally flawed, computing systems.

WOLE TALABI is an engineer, writer, and editor from Nigeria. He is the author of the nebula and BSFA award nominated novel SHIGIDI AND THE BRASS HEAD OF OBALUFON (DAW books/Gollancz) one of the Washington Posts Top 10 Science fiction and fantasy books of 2023. His short fiction has appeared in places like Asimov’s Science Fiction, Lightspeed Magazine, Africa Risen and is collected in the books CONVERGENCE PROBLEMS (DAW books, 2024) and INCOMPLETE SOLUTIONS (Luna Press, 2019). He has been a finalist for the Hugo, Nebula, BSFA and Locus awards, as well as the Caine Prize for African Writing. He has won the Nommo award for African speculative fiction and the Sidewise award for Alternate History. He has edited five anthologies including the acclaimed AFRICANFUTURISM: AN ANTHOLOGY (Brittlepaper, 2020) and MOTHERSOUND: THE SAUÚTIVERSE ANTHOLOGY (Android Press, 2023). He likes scuba diving, elegant equations, and oddly shaped things. He currently lives and works in Australia. Find him at wtalabi.wordpress.com and at @wtalabi on Twitter, Instagram, Bluesky and Tiktok.

The Legend of the Echo Well | Stephen Embleton

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(A Sauúti Story)

Mi’iqoa woke up and forced himself out into the cool, early morning air; the low red sun lit up the ever-present, sheltering rock face of Rez’dhauh a short distance off. She was always a blessing to behold, no matter how much kalabash wine had been consumed the night before.

It seemed an age since the excitement and fervour surrounding the adulthood initiation ceremony of him and his other age-mates had occupied their every moment. The past few juzu had dragged along, with his sister’s group two juzu before him showing the promise and wonder of their newly anointed lives, while his destiny seemed forever out of reach. And, as if suddenly, his was only a moon cycle away, then a sleepless night before, and finally it had culminated two bés ago in the closing ceremonial procession winding its way up the blood-red mountainside to the near-flat summit.

Despite the magic in the air; despite the joy and songs shared, there had been nothing auspicious, no monumental transcendent visions, or meaningful dreams.

Since the last moon cycle, his body was heavy. He was more fatigued than usual; a weariness unlike the foggy head after late nights and fireside nonsense. He was tired.

Mi’iqoa rubbed his face and scratched his matted, dreadlocked scalp. He huffed at the thought of having to traipse up there now, but the idea of draining the entire mountain’s worth of water to quench his thirst compelled him forward. Making his way through the short grass, the dew wetting his bare feet and ankles, the familiar mi-i-tok chirping click of the beetles, of his namesake, filled the early morning air. Disturbed by his footfalls, one of the dark blue insects sprang away to his right and continued its dawn call.

Rising above low, ash-grey shale slopes, stood the majestic stretch of ruddy volcanic rock that was Rez’dhauh. At the height of a dozen mighty ngõgda trees, dawn and dusk set her red, purple, and brown granite aflame. But this burnt mountain of the dry region held within her impenetrable surface both a sweet, cool sustenance, and the primary means of subsistence for those living in her foothills.

Weathered by time, a circular pit had been etched deep down into her, opening an ancient underground water-source of unknown origins, in a land devoid of regular rainfall.

On rare occasions, without warning, the waters were known to bubble and geyser high into the bright blue sky. Neither tremor nor rockfall could be observed, just the inexplicable tumult bursting from the usually tranquil and cool well.

Mi’iqoa strolled over the loose coal-like shale up to the base of the mountain. Passing alongside the large, oval basin built at waist height and connected to the rising rock, he climbed the short wooden steps onto the main ledge.

He took a moment to look back over the village spread out below. Though quiet, smoke drifted up from many of the low hide and wood huts of his people dotted around the flat grassy plain. The morning air was warming; the sign the second more radiant and fierce sun was on her way to the horizon, and his cue to begin his climb. By the time both suns were vertical, his people would be willing the twin suns to dip behind the sacred mountain, for Rez’dhauh to stretch her cooling shadow over them for some reprieve in these scorched lands.

Level with the ledge, the rock and mud basin, sealed by a fixed wooden cover, stood empty. Any last drops of water it still held would be dried up by midday. And so, his reason for being here: his turn at the well to replenish the trough for the villagers. For soon, the early rising elders would make their way to the water basin, and another reason he would have to hurry. He couldn’t imagine getting old. He hadn’t thought that far, hadn’t even figured out what he was doing with his life day to day.

Looking from the basin to the wide inlet, he stepped into the shallow channel and began his steady ascent.

Many a juzu had passed for this well-worn, zigzagging walkway to be carved by his people’s bare feet treading up and down the mountainside; and smoothed by the rich well waters flowing down to fill the ancient tough.

In a time before anyone could remember, the ancients had climbed up this red rock to get to its waters, instead of labouring down a precarious mountainside with weighty kalabash buckets, forming a narrow channel. The pathway became the waterway. And like the well itself, it became part of the mountain, part of the ceremony, and part of their world, flowing freely into the constructed trough below. And the ancients and their descendants had never attempted to tap into the side of the hillside rock to get to the water more easily because of the Echo Well’s sacred nature, as a source of resonant magic.

Though venerated for generations of Mi’iqoa’s people for her life-giving waters, it was her magic which was soon to be revealed to this young and weary villager, and the reason his people would go on to hold her more sacred than ever.

The morning sunlight warmed his sides as he climbed, left, then right, then left, on and on, higher and higher.

The summit was always a welcome respite. A time to sit, for a moment’s rest, and a time to enjoy the magnificent view of the world all around him, from horizon to horizon. Weather-beaten and smoothed, the undulating surface of the mountaintop curved and rolled away in all directions.

He stood back up, noticing his dull headache had abated, and made his way along the remaining portion of the channel to a wide, curved, almost bowl-like niche in the rock with the black maw of the well in its centre. His people believed it had been carved out by the elements, the wind whipping around the mountain and grinding away, with loose rocks and stones, over thousands of juzu. They had constructed a wooden barrier to encircle the well for safety, and enabling a bowed platform to be erected across it.

Two saplings had been bent from either end and tied together in the centre with a pulley system attached. A large kalabash container, tied to thick kalabash ropes, was lowered through a circular gap cut out the middle of the walkway. Quick, brisk pulls on the rope got the receptacle to the waters far out of sight, in the depths of the mountain herself. Heavy-laden, and depending on the level of the waters granted by Rez’dhauh, countless slower tugs would eventually bring the kalabash bucket into view. Once up through the gap in the platform, the dangling bucket was angled over the curved wooden gutter attached from the platform down into the beginning of the channel to flow down the mountainside.

But, before any of these practical duties would happen in the ritual, the waterbearer, today Mi’iqoa, must lie face down on the sturdy platform and gaze through the opening into the cool, dark abyss below.

The sweet, refreshing scent of the subterranean waters was enough to entice him to trust the craftsmanship, and move beyond his fears onto the platform, as he had been doing for the past two bés.

He would then recite the gratitude rite, the magical poem compiled by the ancients that asked Rez’dhauh to raise her sacred, life-giving waters and echo back any teachings or infuse the waters with her healing minerals or, possibly, visions.

The old wood creaked as he stepped tentatively onto the walkway. He held one of the bent saplings, more for comfort than any needed balance. Before taking the last two steps to the centre, he went down on his haunches and crawled over, his gaze fixed on the opening and the rope disappearing downward. His throat was suddenly dry. Anticipation or thirst, he gulped and rested on his chest, chin at the edge, and gripped the wood. Mi’iqoa wondered what it would be like to roll over the edge and disappear into the cold darkness. Did it have a bottom? Would he reach Eh’wauizo?

Over time, various words and magic uttered into the well, had the remarkable effect of them coming back, echoed louder, but reversed and distorted, in the speaker’s own voice. As with the practice of speaking with an elder or the village healer, hearing your own worries and questions repeated back to you allowed for inner reflection. But the well was far more magical. Tidings, foresights or lessons could be discerned from those strange vibrations rising into the clear blue skies.

Mi’iqoa ran through the phrases in his mind, allowing their rhythm, their beat, to calm his racing heart.

Almost immediately after reciting the words, the sound of the waters rumbled, too far below in the darkness to see, churning and rising enough for the waterbearer to lower the bucket and retrieve as many kalabash loads as possible before Rez’dhauh withdrew her offering back into her depths.

He rolled onto his side and glanced around, the second sun warming his face and body, then whispered, “Dear Rez’dhauh, please, can you bring the water up even a fraction more than you did yesterday? Thanks.” He then added, “It’s Mi’iqoa, by the way.” Regret immediately knotted his stomach as he wondered if the mountain would hear his sarcasm. A gust of wind whistled around him, creaking the structure holding him suspended over the void.

Apart from the physical exertion and the honour, or burden as Mi’iqoa viewed it, was how salty or sweet, how revitalising or intoxicating, the day’s water infusion would taste to the villagers by Rez’dhauh, according to the quality of the waterbearer’s own magical pronouncements. Though some spoke of the possibility of poisoning and death, and hence the careful selection of those deemed worthy enough to recite and retrieve water on the peoples’ behalf, this had never come to pass.

There Mi’iqoa lay, pondering his life, wondering why the elders had even chosen him as worthy to perform the duty.

He turned back onto his stomach, took a deep breath, and paused. The words were difficult to speak, though he knew them by heart. With his people relying on this morning’s task being completed, he forced himself to focus on the words, but others muddled in and moved about in his mind. He breathed out and in, and recited the words.

Echo Well, sing back to me.

Sing back to me, Echo Well.

I breathe into you,

You breathe out to me.

Muscle and skin tingled as the magic permeated his weary body. Faint and barely discernible, his voice was echoing back. I breathe out to you…

Loosening his jaw and unclenching his teeth, he relaxed his grip on the wood, raised his voice, and quickened his speech.

We whisper, you speak.

We speak, you shriek.

We cry, you bawl.

We bay, you bellow.

We chatter, you clamour.

We scream, you roar!

Slam! His hand slapped the wooden walkway, sending reverberations downward. –You roar!– repeated the final echo of his voice, but strange, followed by a buffeting cool wind. Though they were someone else’s words of old, there was always meaning in the echoes, he thought, and continued the rite.

We give you our lives,

Our burdens, our woes.

Our pity, our pain,

Our loss, our strain.

Your benevolent blessings

Our bountiful gain.

–You pity your woes. See blessings in pain. I give you life. Give yourself life.–

Mi’iqoa hesitated for a moment, absorbing what came back, wondering who else had heard the same, echoed repeatedly over time. He uttered the final phrases.

We ache, you comfort.

We bleed, you seed.

We receive what you offer,

No more than we need.

The air pushed upward before he heard the distinctive sound of a rising storm. Standing, relieved and rejuvenated, he took his place at the kalabash rope and pulley, and began hurriedly lowering it. Further and further it went, rattling and squeaking with every vigorous tug.

Art by Stephen Embleton

The rush of the rising water quieted, yet the container had not hit the surface. Suddenly the rope slackened and up came the splash of the bucket. To Mi’iqoa’s frustration, Rez’dhauh had obviously pushed her water level up less than the bés before. He resigned himself to his arduous task, setting his jaw tight and yanking at the taut rope.

The suns were blazing, and Mi’iqoa had lost count after a dozen or more loads pulled up and splashed down into the gutter to the channel. He was tired and his arms and shoulders ached. The elated hum of the villagers far below signalled the water was reaching its destination.

A flock of small birds had gathered along the channel a few paces from the well, chirping and chatting, bathing and drinking their fill of the cool water colouring the rock a deep, rich red.

“Last one,” he said to no one in particular, or maybe the birds. But rather than tipping the entire kalabash out, he kept a portion, his first portion for the day, as his reward. He was still panting, sweat stinging his eyes, as he plonked the container on the edge of the walkway and slumped down, dangling his feet over the gaping well.

“Let’s see how it tastes.” As on his previous shifts, he had waited until the task was complete before he sampled any water from his batch. Tongue sticking dryly to the roof of his mouth, he lifted the bucket to his lips and gulped as much as he could before needing a breath.

He shrugged. Not as sweet as he had hoped, but it was refreshing enough after the hard work. He drank his fill and, with a final tip, splashed himself from head to toe with what remained.

His skin tingled with the coolness, and his body relaxed into a burning ache. Slouched over, he watched the water droplets glisten and fall away below, quickly disappearing.

He gave the bucket a shove, teetering it over the hole in the walkway and falling over to dangle by its rope, ready for tomorrow.

Mi’iqoa should have felt uplifted, having delivered the essential water to his people. Instead, he was relieved that he was done for the day. The heaviness returned and, exasperated; he swung his weary legs limply onto the walkway, lay face down at the bucket hole, and sobbed.

Salty tears burned his eyes and dripped off his nose, and like the water before, sparkled and disappeared. With an aching, choking throat, he caught the sobs between quivering breaths. The sound of a distant plop came up to him.

“What’s next? What am I supposed to do with my life? Everyone seems to have found their purpose, their duties as parent, artisan, hunter. What am I? A repeater of the words of others?”

He could not imagine living the rest of his life like this.

“What am I?” he gritted his teeth.

“I am scared.” He spoke the words that had been on the tip of his tongue, the words that demanded to be spoken. He shook his head.

Finally, all he could do was speak.

“I am tired. I am weak. I am lacking. I am scared!” The words moved, unrestricted, louder. ”I am unsure. I am inadequate. I am incomplete. I am unheard!”

A rhythm came, moving through him like a steady drumbeat, echoed by the thump of his hands.

“My life was muddied, my way unclear. My days, my dreams, were driven by fear. You filtered my mind, my thoughts distilled. Your waters refined; your magic filled. You drip, you trickle, you flow, you flood. My waters are clear, no longer mud. My path was stifled, rutted, and grooved. My channel’s now open, flowing and smoothed.

“All I can give the world is my truth. All I can offer are the worries of youth.

“I want to shout. I want to cry. Squash my doubt. I want to fly.”

At first, his words came back unchanged, echoed and amplified, yet laced with the familiar magic and promise.

Just as the sounds subsided, and Mi’iqoa caught his breath, there came an upsurge of wind, and the walkway quivered.

The flock of birds took flight, quickly vanishing into the blue sky above him.

The surrounding air sizzled with sparks of light, the sound like a rushing roar filled the well. Just in time he looked over the edge of the walkway to see the water barrelling up in a shimmering, turquoise, glassy mass.

Mi’iqoa leaped off the platform as it flooded over the wooden structure. But rather than blasting out like the geysers of legend, it flowed in gentle pulses, staining the rocky surface a shimmering crimson in the sunlight. He chased the flow and stopped at the edge of the mountaintop. The wide wave flooded uncontrolled down the steep slope, but eventually narrowed and channelled into the drainage path and into the basin.

Louder than the falling waters, the shouts of surprise and joy from those gathering around their water source carried up on a cool gust of wind.

The words continued to run through Mi’iqoa’s mind, coming out in the same steady beat. Rhythm, poetry and song; he could feel it in him.

Our words, our songs, are your victual to receive,

Your waters, your echoes, are our reprieve.

We must not withhold; we must not let brew.

We take our truths, and speak them to you.

Your patience unyielding.

Your waters unending.

Mi’iqoa gave us new words to say. And Mi’iqoa allowed us to use our own words, our own truths, spoken out into our world.

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Stephen was born in KwaZulu-Natal, South Africa and resident in Oxford, since being an Academic Visitor to the African Studies Centre, University of Oxford in 2022. Stephen was awarded the Best Novella by an African in the 7th Nommo Awards presented in person at Glasgow WorldCon in August 2024 for his Sauúti-based novella, “Undulation”. His first short story was published in 2015. Soul Searching, his debut speculative fiction novel, was shortlisted for the Nommo Awards in 2021. His YA fantasy novel, Bones & Runes, was a finalist in the 2021 James Currey Prize for African Literature, published in 2022. Stephen is editor of the 2023 edition of Flora Nwapa’s posthumous final novel, The Lake Goddess. Stephen is one of the eleven African writers in the Sauúti Collective shared-world. Stephen authored an academic essay for Bloomsbury UK “Cosmologies and Languages Building Africanfuturism: from Bones & Runes to the Sauúti Collective” published in November in 2024.