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Outros planos | Ebere Obua

Tradução de “Other Planes” (Omenana, Issue 25, March 2023)

Traduzido por/Translated by:

Elton Luiz Aliandro Furlanetto

Mônica Stefani

Você esteve aqui antes; nessa casa com o portão preto com detalhes em dourado e espigões afiados na parte de cima. Nessa casa com as buganvílias rosas que se apossaram da cerca de alvenaria, tanto que mal dá para ver o cimento. Você sabe que os donos da casa têm um cachorro bonito e branco com uma coleira roxa. Você se lembra do quanto achou engraçado quando a fofurinha latiu para você naquela noite até que um homem grisalho, enrolado em um robe preto, veio gritar com ele.

– Tá latindo pra quê?! – o homem gritou antes de ligar uma lanterna e olhar os arredores. Ele não conseguiu ver ninguém, então sibilou e pegou o cachorro, ralhando com ele no caminho até a porta.

Você ainda está olhando para o portão quando ele se abre e o homem e o cachorro surgem de trás dele.

#

Você nunca tinha percebido quão raro era ter sonhos tão vívidos e controlados como os seus até que viu um homem no TikTok fazer piada com a aleatoriedade dos dele. Com curiosidade, você começou a perguntar para colegas de classe como eram os sonhos deles e delas. Era uma pergunta esquisita, mas as respostas eram divertidas: aparecer pelada ou pelado na escola, beijar as paqueras, também muita gente caindo.

Você aprendeu sobre o sonho lúcido nas horas que ficava no computador um sábado à noite. Se perdendo em meio a artigos sobre essa habilidade aparentemente especial, nem viu o ponteiro dos minutos invadir sorrateiramente sua hora de dormir até que a mão do seu pai acertou sua bochecha tão forte, causando um zumbido nos seus ouvidos que te deixou sem dormir a noite toda.

É nessa sensação que você está pensando agora, um pouco menos de dez minutos para sua hora de dormir, enquanto lê sobre ao que sua pesquisa na Internet tinha te levado: projeção astral.

 – É pra isso que você está usando seu tempo no computador?! – você escuta antes que a mão do seu pai entre em colisão com seu rosto.

– É esse tipo de coisa que matou sua mãe! Essas coisas ocultistas! Você quer se juntar a ela, abi, é verdade?

Você quer perguntar a ele o que ele quis dizer, mas entre a sensação de ardência nas suas bochechas e a intensidade da voz dele enquanto segue narrando os perigos da viagem astral, você decide que não é a melhor hora.

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Você consegue finalmente se projetar de novo nesta noite porque é sexta-feira e seu pai está num encontro de oração da madrugada para os diáconos. Tia Lolade, irmã dele e sua cuidadora dessa noite, é uma versão mais carinhosa dele, então ela deixa você ficar duas horas no computador em vez de uma e ri da instrução do seu pai de se certificar de que você não esteja “zanzando no reino dos espíritos” durante seu sono.

– Como eu seria capaz de fazer isso, abeg, por favor? – ela diz para você mais tarde, com um sorriso no rosto. – Devo ir no seu quarto e começar a gritar “espero que seu espírito esteja em casa, ein!”?

Você se lembra da brincadeira antes de cair no sono e dá risada.

– Não, ele não está – você pensa com seus botões.

Quando você finalmente dorme,  se retira do sonho lúcido, e se projeta para o plano astral, a estranheza do lugar te surpreende; como o chão debaixo de você parece água brilhante; como você afunda nele para aparecer em um novo ponto toda vez; quão estranhos os seres são ali, com rostos e corpos que sua mente humana não consegue compreender. Há caudas e chifres e barbatanas e pelos e múltiplas mãos e múltiplos olhos – todos de cores variadas. Chega a ser espantoso.

O que é mais estranho, entretanto, é que você consegue entender esses seres: você não sabe a língua que falam e não pode compará-la com nada que tenha ouvido na Terra. Mas quando fala com eles, e eles respondem, você sabe exatamente o que estão dizendo.

Você não vai se projetar para o reino material tão cedo.

#

Você encontra sua mãe na quarta viagem. Suas pesquisas na internet já te ensinaram que há outras entidades no reino astral. Você sabe como evitar as entidades que irradiam energia negativa. Você sabe de quais pode se aproximar para conseguir ajuda. Você sabe que alguns dos seres humanos ali não estão “despertos” o suficiente para estarem conscientes de suas presenças, então você já não sente mais que estão sendo arrogantes quando te ignoram. Para falar a verdade, você não liga para esses seres de jeito nenhum. Você só está ali pela experiência: para explorar as cidades que sua mente humana não consegue vislumbrar, para experimentar a fluidez do tempo e espaço, movendo-se para rumos diversos em segundos. Você está ali para escapar da sua realidade. Ainda assim, ali está sua mãe morta há três anos, uma mulher que tirou a vida com as próprias mãos, te deixando nas mãos de um homem que vocês duas desprezavam. Uma mulher que você encontrou com os olhos avermelhados naquele início de manhã de domingo – quando seu pai havia pedido para você ver porque ela ainda não estava pronta para ir à igreja – balançando em uma corda amarrada a um gancho no teto, com a língua saltando da boca, na qual a saliva se convertia em espuma. Quando o corpo pálido dela começou a se debater, a esperança te cobriu de expectivas, mas a realidade não foi gentil o suficiente para te permitir o tempo de descê-la dali. O corpo dela parou.

É dos espasmos que você lembra quando a vê, da forma que a cena passava na sua mente, hora após hora, dia após dia, mês após mês, até que gradualmente, isso afundou no mais profundo e escuro recanto da sua mente, somente emergindo para te atormentar nos momentos mais tristes. Depois, você se lembrou do vazio, a crueldade dele, de como isso te baniu a longos períodos de sono para esquecer sua presença, rastejando de volta quando você acordava, te lembrando da sua perda e você começava a chorar até o sono te encontrar novamente. Você pensava que seu pai também se sentia vazio. Ele começou a beber – algo que você nunca esperava que esse coroa super moralista fosse se dar a liberdade – e resmungava regularmente sobre como as “afiliações demoníacas” da sua mãe eram as culpadas. Você achou estranha a acusação de que havia demônios invisíveis. A única afiliação demoníaca dela era ele.

#

A segunda vez que você encontra o fantasma da sua mãe é quase mágica. Você percebe que tem uma atração por aquilo – por ela. Como se tivesse respondido a uma invocação feita por ela, e é um chamado ao qual não pode resistir, você não quer resistir. Ela te abraça. Você a abraça o mais apertado que pode e deseja conseguir chorar. Muitas emoções estão atravessando você violentamente nesse exato momento.

– Senti tanto sua falta, meu amor – ela começa, mas você só consegue manear a cabeça em resposta.

Você tem tanta coisa para contar para ela: as conquistas que ela perdeu, os momentos difíceis quando ela não estava presente para te confortar, os maus tratos dos quais ela não podia te proteger. Mas você não fala sobre nada disso.

– Por que você fez aquilo com você mesma? – você pergunta, em vez de falar o que queria, e começa a se perguntar sobre a adequação da sua pergunta assim que ela sai da sua boca.

Ela desvia o olhar primeiro, e o corpo dela desliza para frente para que ela consiga segurar o rosto entre as mãos.

– Eu não quis ser um fardo para você e seu pai – ela diz após um suspiro dramático.

– Um fardo? – você pergunta, incrédula. – Você não era um fardo. Se esse é o caso, o único fardo da nossa família continua vivo e passando bem!

– O médico me disse que eu estava com câncer – ela respondeu e seus olhos arregalaram, mas ela não te dá chance de falar. – Câncer no pâncreas.Terminal. Quanto mais a gente falava sobre o tratamento, mais eu entendia que o peso financeiro de me ajudar ia colocar nossa família em maus lençóis. Por Deus, só os exames já me deixaram arrasada.

– Por que você não contou pra todo mundo, mamãe? – você pergunta para ela, encarando-a profundamente. Muitos pensamentos estão dançando na sua mente sobre essa revelação, mas esse é o mais importante. – A tia Lolade, a vovó, o vovô, seus irmãos e irmãs, até o papai, eles iam conseguir esse dinheiro juntos. Teriam encontrado uma maneira.

– E para quê? Pergunte ao Google sobre a expectativa de vida de pacientes terminais de câncer. Imagina eu pedir que minha família gastasse todas as economias, sabendo perfeitamente que eu não seria capaz de sobreviver por mais de um ano? Tive de refletir sobre essas coisas.

– Mas você não pôde refletir sobre o efeito de que ver você balançando pendurada no teto ia me causar – você murmura.

De repente, você se dá conta de uma coisa – talvez sua mãe não estivesse consciente da gravidade de suas ações quando as realizou.

– Não pensei em tudo – ela começa a explicar, mas você não quer dar ouvidos àquilo.

– Você não pensou no que ia acontecer com a gente ao ver você daquele jeito? Não pensou no que o papai ia se tornar depois de ver você morrer daquela forma?

– Eu conheço seu pai. E eu sei que se tem uma coisa que ele detesta na vida é ter um problema financeiro jogado nele do nada. Ele faria a coisa certa e ia contribuir para o meu tratamento, mas ele ia me odiar até eu morrer, o tempo todo, reclamando com qualquer pessoa que se dignasse a ouvir, que foram minhas “afiliações demoníacas” que me deixaram tão doente. Depois disso, a raiva dele seria o fato de que ele gastou todo aquele dinheiro, só para eu morrer no final.

– Apesar de tudo que você disse, ainda não consigo encontrar o motivo para você ter feito o que fez, – você diz para ela, mas ela continua, como se ninguém tivesse dito nada.

– Foi exatamente o que aconteceu depois que a mãe dele morreu. Você não estava lá para vivenciar aquilo, mas eu estava.

– Então me largar com ele era a única opção?! – você pergunta. Você não percebe o quanto a resposta dela tinha te deixado com raiva até que você ouve o que disse.

– Você me largou com ele! – você continua. – Você pensou no que iria acontecer comigo?! Você pensou no quanto eu iria sentir a sua falta? Você pensou…

– Foi precipitado, não posso negar, – ela te interrompe. – Mas preciso que saiba que não foi minha intenção te deixar para trás. Não estava pensando com clareza, só fiz o que parecia o melhor para você. Não tinha os recursos  ou o apoio para fazer as coisas do jeito certo e sinto muito, meu amor. Realmente sinto.

A voz dela some, você se sente mal por ter levado a conversa para esse lado. Mas você tem todo direito de ter essa chateação, você acredita. Uma indecisão te prende entre sentir falta da sua mãe e detestá-la por ter ido embora.

Other planes art
Art by Sunny Efemena

– Como você aprendeu a fazer isso? – ela pergunta, mudando de assunto. – Você veio aqui me ver? Não consigo imaginar que seu pai teria permitido que você aprendesse sobre viagens astrais.

– Ele não deixou – você diz e ri um pouco para consigo.

Você conta para ela como ele pegou você pesquisando sobre projeção astral na internet e a super-vigilância do seu sono que se seguiu a isso. Você conta para ela como começou, sobre o cachorro que conseguia ver você apesar de o dono dele não conseguir.

– Sempre soube que passei alguma coisa para você. Isso compensa o quanto você parece o seu pai em vez de mim – ela diz, rindo discretamente. Você faz o mesmo. Estava com saudade de rir com a sua mãe.

 – Ele acha que é tudo do mal – você diz.

– Ah. Existe de fato mal por aqui. O engraçado é que eu já sabia disso antes de vir. Mas estar aqui há tanto tempo – como a alma de uma pessoa que tirou a própria vida, isso realmente esfrega o mal na sua cara.

– É diferente? – você pergunta. – Para as pessoas que não cometeram suicídio?

– Eles e elas vão para o céu. Sem escalas. Ou para o inferno – ela diz, esticando a mão para cima e para baixo para enfatizar. – O resto de nós? O universo não nos dá nem mesmo uma chance.

Ela fala sobre as lembranças que se seguiram à sua morte. Como ela viu as outras almas subirem velozes como fogos de artifício, enquanto ela afundava cada vez mais em outros planos. Ela fala sobre o cansaço que a acometeu quando chegou, como se o lugar tivesse a embrulhado em um manto de fadiga insuperável.

– Eu daria qualquer coisa para ter um corpo novamente. Esse lugar muda você. Não sou a mãe que você perdeu, meu amor. Sou uma versão destruída dela.

– Você não está destruída para mim – você tenta confortá-la, e abraça a cintura dela. Ela apenas suspira.

– Às vezes – ela começa – quando me sinto muito solitária ou tive que lutar contra algum ser de vibração mais baixa, queria ter deixado o seu pai fazer o que era necessário para mim.

#

– Você precisa parar de vir tanto aqui  – sua mãe adverte você solenemente.

Você não sabe quantas visitas fez desde que a encontrou pela primeira vez porque parou de contar. Você aprendeu a saltar de volta para o seu corpo assim que seu pai o toca, de modo que parece que você estava apenas dormindo. Isso foi outra coisa sobre a qual sua mãe te avisou.

[image, by Sunny Efema]

Os avisos dela se tornaram tão frequentes quanto as suas viagens. Ela até te acompanha de volta ao seu corpo – para o caso de você encontrar uma entidade maligna no seu quarto. Você não consegue decidir se adora muito esse comportamento autoritário, por uma nostalgia que o sentimento do amor materno traz, ou se você não gosta.

– Você precisa entender que não é bom para seu corpo físico ser deixado vazio com tanta frequência – ela prosseguiu. – E vir aqui tantas vezes vai afetar seu cérebro negativamente. Sua realidade não é aqui. É no plano físico. Visitas constantes vão atrapalhar a sua percepção…

– O papai está no quarto – você a interrompe.

– Vamos – ela diz para você, te abraçando forte.

Dentro de milissegundos, seu corpo está na sua frente. Seu pai está te sacudindo para acordar, mas não é isso que prende sua atenção.

Há três sombras no quarto: entidades escuras com olhos vermelhos, uma constituição muscular humana, cabeças de ave e caudas de leão. Elas se viram para você e sua mãe assim que vocês chegam. Seu pai não consegue vê-las.

– Vá para o seu corpo – sua mãe começa a sussurrar para você. – Vou tentar mantê-los longe dele.

Você acena com a cabeça e vai para o canto do quarto o mais calmamente possível. No centro do quarto, sua cama já está cercada pelas figuras, então é cedo demais para se aproximar. Você não faz ideia do que elas são capazes. Elas te observam enquanto você se afasta da sua mãe. Os olhos vermelhos brilham ferozmente enquanto seguem todos os seus movimentos. Você percebe que não está tremendo porque não está no seu corpo. O corpo humano iria tremer muito ao ver tais entidades. Iria suar, chorar, até se mijar. Iria fugir também. Você pensa nessas coisas e fica ansiosa. Um desejo intenso pelo corpo que você tem abandonado toda noite se instala. Você precisa da realidade da qual vem fugindo, uma realidade na qual você não precisaria nunca encarar tais seres. Você está em choque.

Seu pai não percebe a cena que se desenrola na presença dele. Frustrado por tentar te acordar, ele abandona seu corpo e vai para o quarto dele, prometendo “lidar com você” quando voltasse.

Sua mãe corre para a cama, efetivamente distraindo os seres, e você aproveita para entrar no seu corpo. Seu plano falha. Uma mão feita de sombras te arremessa para a parede como se você não fosse nada além de um inseto chato. Você se choca contra o papel de parede rosa com desenho de nuvens antes que sua forma astral se estatele no chão. Você não sente dor. O sentimento é, ao invés disso, de uma fraqueza esmagadora. Você está quase paralisada. Depende da sua mãe te salvar agora.

Você consegue ouvi-la brigando com as feras. Você ouve a voz dela: aguda e frágil, contra os grunhidos profundos e guturais das feras, e você se preocupa que a forma enfraquecida dela não seja forte o suficiente para expulsá-las. Um sentimento de derrota começa a se instaurar. Ele é intensificado pelo silêncio absoluto que toma o quarto, e a sensação intensa e rodopiante que escala a sua forma astral. Seu corpo foi ocupado. 

Você leu sobre seres como esses. Como eles andam pela terra, procurando ocupar corpos de quem foi viajar no reino astral. Você nunca leu sobre como esses corpos são recuperados.

Você quer chorar sua perda. Quer gritar. Gemer e rolar pelo chão. Mas não consegue se mover. Em vez disso, o conselho da sua mãe ecoa na sua mente, chamando você de tola daquele jeito maternal que apenas um “eu te disse” consegue fazer. Agora, você vai poder viver com ela pela eternidade. Ver a sua mãe novamente. Era isso que você queria, não era?

– Mamãe – você luta para pronunciar a palavra.

Você não faz ideia de onde ela esteja, mas torce apenas para que suas últimas forças não lhe tenham sido exauridas.

Ao ouvir sua voz, as feras marcham para o canto do quarto onde jaz sua forma astral, uma após a outra, até que todas as três estejam olhando para você.

– Três. Três? – você pensa consigo mesma.

Elas começam a te levantar.

– Espera – você ouve a sua voz.

O seu corpo desliza na sua direção. Há algo familiar no ritmo dos passos que você escuta, mas você não quer aceitar a confirmação que te invade lentamente.

– Meu amor… – ela começa.

– Não acredito que você fez isso! – você tenta gritar, mas sai apenas um sussurro alto. – Por que você fez isso?!

– Eu te disse. Não sou a mãe que você perdeu.


Ebere Obua é uma estudante de medicina com vários interesses paralelos. O trabalho dela foi publicado na Olongo Africa, Preachy, The Roadrunner Review e Sylvia Magazine.

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