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Os Desconhecidos | Nana Afadua Ofori-Atta

Tradução de “The Strange Folk” (Omenana, Issue 25, March 2023)

Traduzido por/Translated by:

Lucas Brites Leque

Kwesida

Hoje é domingo. Os domingos são para o passado.

Não é para ficar lembrando das coisas que já se foram, mas para recordarmos da fundação da minha cidade natal, dos sacerdotes que guiaram meus ancestrais e das criaturas que espreitam nas profundezas do oceano que se avizinha à cidade.

Os domingos existem para falar mais uma vez dos laços entre a Mãe Oceano e a cidade. Os domingos existem para fortalecer mentiras.

Ebo está falando sobre a ilha de Afia de novo. Ele está avisando meu irmão para ficar fora disso. Meu tio é o único na cidade que fala sobre a ilha flutuante desse jeito. Todas as outras pessoas falam dos servos da Mãe Oceano que caminham pela ilha com reverência e guardam um tesouro. Nós os chamamos de os Desconhecidos.

– Águas turbulentas que podem destruir qualquer navio. – Ebo diz em voz baixa. Ele faz o som das águas e meu irmão deixa escapar uma risadinha. – É a última linha de defesa. Você vai ficar longe de lá, não é?

Meu irmão concorda energicamente com a cabeça. Fiifi parece um bobo mexendo a cabeça daquele jeito.

– A última linha de defesa contra o que exatamente? – Pergunto, mesmo já sabendo que Ebo não vai responder. Eu já perguntei isso antes.

– O outro lado – Fififi diz – Todos aqueles que morrem no mar acabam parando lá.

Ebo levanta a sobrancelha e pergunta:

– E onde é que você ouviu isso?

Quando meu irmão explica que foi nosso pai quem contou a ele, Ebo dá uma risada.

– Pra um pescador, é de impressionar o pouco que seu pai conhece dos mares.

Desapontado, já que Ebo não concordou com sua resposta, Fiifi pega sua coleção de conchas. Ele costuma fazer isso quando não sabe muito bem como reagir em algumas situações. É como um cobertor de estimação que já tomou conta de uma parede inteira no seu quarto.

– São os Desconhecidos – deixo escapar. Os lábios do meu tio se comprimem formando uma linha fina.

– Não, também não são eles. – diz.

– E como você sabe disso? – pergunto, cansado de suas histórias, de suas mentiras. Não existe espírito do oceano, a ilha de Afia não está se movendo ao redor da costa. É uma ilusão de ótica. O que quero realmente entender é o porquê da ilha incomodar tanto o Ebo. Estou cansado de ser feito de trouxa.

– Ninguém nunca viu eles – digo a ele e fico pensando… mas as pessoas dizem que eles assumem formas de animais, principalmente de tartarugas, e por isso o ninho deles não era incomodado.

Ebo tem um olhar estranho. De repente, ele aparenta ter quase sessenta anos, ainda que na verdade ele tenha quarenta. Sua pele negra está enrugada, como se ele tivesse ficado por muito tempo dentro da água.

– As coisas daquela ilha e os Desconhecidos são duas entidades diferentes. As coisas daquela ilha corromperam-se até tornarem-se algo anormal, abominável. Eles só servem a si mesmos. – A voz de meu tio assume um tom áspero.

– Monstros? – Fiifi pergunta com a voz tremendo.

– Eles não podem te pegar – diz Ebo colocando um braço em volta do meu irmão – não comigo por perto.

Mordo meu lábio de nervoso, levanto do sofá e saio. Posso ouvir o oceano, mas está escuro demais para ver onde a ilha está. Será que tinham mesmo monstros vagando por aquelas florestas? Odeio como Ebo consegue fazer isso. Ele consegue fazer eu me interessar pelas suas histórias mesmo que eu tente com todas as minhas forças deixar elas na minha infância.

#

Benada

Hoje é terça-feira. As terças são para a Mãe Oceano.

Sem nadar. Sem pescar. Muitos evitam a praia nesse dia. Eu não sou uma dessas pessoas. Fiifi está ao meu lado na areia quente. Está tentando cavar um buraco com os pés. Falaram várias vezes para irmos para casa, apesar de tecnicamente não estarmos quebrando o tabu.

As terças provocam muito medo na minha cidade, chega a ser até perturbador às vezes. Minha universidade também fica em uma cidade costeira, mas não chega a parar tudo quando é o terceiro dia da semana. Na minha cidade, as terças servem para manter as coisas como estão.

O sol está alto no céu, as nuvens mais fofas que já vi circundam-no. A água é azul-escura, cintilando ao quebrar das ondas na praia. Observo as coisas ao meu redor, as permitidas na praia já que é dia do banquete da Mãe Oceano. Os pescadores cantam enquanto amarram suas redes. É o modo deles a honrarem. Vejo meu pai e Ebo entre eles.

Meus olhos acompanham a ilha de Afia, parece estar mais perto da margem do que estava na Dwowda. Fico pensando em como são esses monstros. Ebo diz que eles têm as partes do corpo em lugares diferentes, bocas nas axilas, olhos nas bocas.

– Tá pensando em ir atrás do tesouro? – Meu irmão me pergunta. Viro-me para olhá-lo. – Se eu tivesse o tesouro, adivinha só o que eu ia fazer – diz ele.

– Iria comprar um monte de caramelo? – pergunto.

Um sorriso brilhante abre em seu rosto e dou risada. É tão fácil agradar uma criança de oito anos.

– Posso te contar um segredo? – diz quase num sussurro enquanto brinca com a camiseta, afundando mais um pouco o pé na areia.

– Você pode me contar qualquer coisa.

– Eles querem se livrar do tio Ebo. Escutei eles falando sobre isso. Mamãe diz que ele está amaldiçoado.

Suspiro. Essa merda de novo. O que aconteceu já tem quase uma década. Não era culpa do Ebo as pessoas terem acompanhado seu ato tolo de quebrar o tabu. Não era culpa dele a Mão Oceano, por algum motivo, não o ter levado. Eles tem que parar de jogar toda a culpa nele quando as coisas não dão certo na nossa família.

– O tio não está amaldiçoado.

– Mas a mamãe disse que…

– Vai ficar tudo bem. Ele não vai a lugar nenhum, ele é muito teimoso pra isso acontecer.

Parecendo satisfeito com a ideia de que o tio não seria mais expulso, Fiifi pergunta o que eu faria com o tesouro. Quero pensar que faria coisas bem práticas com os sacos de dinheiro: comprar ações, investir em empresas, qualquer coisa que me trouxesse mais dinheiro.

– Comprar um navio – estico meus braços como se segurasse o timão de um navio e faço minha melhor imitação de pirata. – Saquear as ilhas mais próximas, procurar por ouro – Abaixo minha cabeça na altura do ouvido do meu irmão – e me encontrar com algumas mulheres.

Ele dá uma gargalhada.

– A gente pode navegar pelo mundo, ir pra todos os lugares da minha enciclopédia. Vamos ser os irmãos piratas, pensa só nas aventuras que a gente podia ter. – Fiifi diz enquanto dá pulinhos, balançando o braço como se estivesse em uma luta de espadas. Ele me encara.

– Daí você não vai precisar voltar pra faculdade.

– Claro…

– Você não acha?

– Acho, mas eu preciso voltar para a escola. Vou sempre voltar pra passar um tempo com você. Seremos sempre os irmãos piratas quando eu estiver por aqui.

Meu irmão me olha como se estivesse considerando o que fazer, aceitar minha resposta ou fazer birra.

– Tá bom então, quando você tá aqui a gente vai nadar e comer caramelos até nossos dentes ficarem podres.

– E pirata de verdade tem dente bom? – Fiifi balança a cabeça rindo e eu deixo escapar uma risada também.

Decidimos construir um castelo de areia antes que a maré suba. Já que não podemos pegar água do mar, compramos várias bolsas de água filtrada de um dos poucos quiosques abertos. Usamos várias bolsas para criar um fosso e duas torres. O castelo tem até um portão feito com alguns gravetos. É uma pena que vai desaparecer em algumas horas. Tiramos uma foto nossa do lado do castelo.

– Olha! – exclama meu irmão apontando para alguma coisa perto da margem. Uma concha grande e branca enterrada pela metade na areia. – não tenho nada parecido com isso. Bem capaz de ocupar metade de uma prateleira. Vou lá pegar.

– Não vai fazer coisa nenhuma – minha voz sai mais áspera do que eu pretendia – com sorte, ainda vai estar aqui amanhã.

– Mas e se não estiver?

– Mais sorte da próxima vez – respondo dando de ombros.

–  A água não está chegando lá ainda. Não vou estar quebrando nenhuma regra. – Fiifi choraminga.

– Está sim. Vamos pra casa.

Fiifi me ignora. Ele corre em direção à concha. Sinto um arrepio na espinha, uma dor no peito. Em breve, não terei meu irmão. Eu grito para que volte enquanto corro atrás dele. Fiifi pega a concha, vira-a em suas mãos e ri de alegria. Eu o encaro em pânico. Fiifi está com a água na altura dos tornozelos.

Seu riso logo dá lugar a gritos por ajuda enquanto as águas, até então calmas, de repente agitam-se violentamente, arrebentando contra a margem e cuspindo pedaços de madeira na praia. Assisto às ondas engolirem por completo o corpo do meu irmão. Trovões ressoam no céu e raios atingem a areia da praia como se fossem esculturas sendo formadas. As canções de reverência dos pescadores são quase inaudíveis. Minha boca está cheia de bile e a chuva está caindo forte.

Agora meu irmão pertence ao oceano.

Fico encarando a concha ali na areia. Os pescadores correm para algum lugar seguro fugindo das árvores que caem. Meu tio e meu pai estão tentando me afastar para longe. A concha debocha de mim. Um irmão melhor tentaria salvar Fiifi, mas esse não sou eu. Sou só um covarde.

– Kwame – Ebo põe a mão em meus ombros – o que você tá fazendo aqui?

– Fiifi… Fiifi…

– Não me diga que ele está… ai meus deuses! – Os olhos de Ebo se apertam de dor. – vamos, temos que tirar você daqui. Fiifi vai ficar bem. Eu prometo.

Meu pai está gritando comigo por não ter cuidado do meu irmão. Ele não acha que eu sei disso? Fiifi está morto e a culpa é toda minha. Fui eu quem o trouxe para a praia. Algo dentro de mim se quebra. Talvez meu irmão esteja morto, mas o oceano não pode ficar com o corpo dele. Isso eu não vou permitir. Fiifi merece um funeral de verdade e uma lápide para eu poder visitá-lo, um lugar onde eu possa contar a ele das nossas aventuras de irmãos piratas. Eu me solto dos braços do meu tio e mergulho no oceano feroz.

Não é tão escuro assim debaixo do mar quanto é visto lá de cima. Parece ser iluminado por centenas de lâmpadas. Levo um tempo até ver Fiifi de relance.  Olhos fechados, mãos na cintura e cercado por tartarugas.

Tartarugas? Os Desconhecidos?

  Eu nado para mais perto, tentando não esbarrar em nenhuma tartaruga. Pego meu irmão em meus braços e rumo em direção à superfície. Estou ficando sem ar mais rápido do que o esperado.

Escuto um zunido. Tentáculos surgem do fundo do mar, puxando e empurrando até que conseguem tirar Fiifi das minhas mãos. Outro tentáculo envolve meu pescoço e aperta. É grudento e pegajoso, está a ponto de me estrangular. O silêncio recai sobre tudo, até mesmo os cardumes de peixes que passavam apressados parecem agora parar por um momento. E então, o fundo do mar abre os olhos.

Dezesseis. Havia dezesseis olhos, todos olhando para mim. Sua voz me lembra o som de uma orquestra. Está falando em Fante.

– Ele pertence a mim – o fundo do mar diz – assim como você, mas por agora você pode ir.

O que isso quer dizer?

O tentáculo solta meu pescoço e nado em direção ao meu irmão. Outro tentáculo me impede. Estou quase sem ar. Mal consigo manter meus olhos abertos. É como se minha garganta estivesse inchando e meu peito afundando.

Alguma coisa está nadando na minha direção. Algo que parece ser humano. Tem nadadeiras no lugar de pés e barbatanas por todo o braço. Devo estar imaginando coisas por causa da falta de ar. A coisa brilha numa cor amarelo neon. Minha consciência está se esvaindo. Não pude salvar meu irmão. Vamos os dois morrer nas garras da Mãe Oceano.

Por que a criatura tem o rosto do meu tio?

#

As pessoas da cidade acreditam que há duas opções disponíveis antes de você morrer: acaba se tornando um antepassado ou volta para a casa da sua família para viver mais. Não é o que acontece comigo. Vejo os olhos da Mãe Oceano. Vejo massas disformes de carne com dentes e cabelos. Massas de carne com vários membros, todos em lugares trocados, arrastando-se pela areia da praia, atraindo os marinheiros com vozes sensuais. Vejo a ilha de Afia do jeito que ela realmente é.

Quando abro meus olhos, estou sentindo tanta dor como jamais tinha sentido. Meu pai está olhando para mim, um sorriso irônico mancha seu rosto. Tento dizer algo, mas sinto dor na garganta. Ao meu lado está Fiifi. É difícil olhar para ele, sua pele sem cor, seus lábios rachados. Ele parece estar esvaziado.

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Eu consegui? Eu consegui.

– Ele tá… tá bem? – Me esforço para dizer as palavras.

– Não. Ainda há um pouco de vida, mas logo ele vai nos deixar – diz meu pai.

– Ignore ele – Ebo diz, lançando um olhar para meu pai. Suas roupas estão encharcadas, mas há um tom de humor na sua voz como se duas pessoas não tivessem quase sido mortas.

– Foi muito valente o que você fez. Sempre soube que esse tabu era baboseira.

– Baboseira? – vocifera meu pai – Tem um porquê das coisas terem uma ordem certa. Ele trouxe a maldição de volta.

– Ah, cale a boca! Seria de se pensar que você estaria feliz por seus filhos não estarem mortos.

– Seria melhor se eles estivessem mortos. O único motivo dele ter achado que tudo isso fazia sentido foi por sua causa. Nunca deveria ter deixado você ficar com a gente. Seu inútil.

– Pode até colocar a culpa em mim se isso te ajuda a lidar com a situação. Mas inútil? Você estaria no fundo do mar se não fosse por mim – Nunca tinha visto meu tio revidar. Ele sempre desviava dos insultos do irmão dele com uma piada ou um sorriso. Isso me incomoda.

– Ou já esqueceu por quem foi que eu quebrei o tabu?

Os lábios do meu pai se contraem.

– Isso já faz muito tempo

Olho para eles. Ebo estala os dedos. Como eu nunca tinha ouvido essa parte da história?

O mar está calmo novamente e entre nós só o silêncio. Acho que todos acreditamos que Fiifi está morto. Deve ser por isso que nem se preocuparam em levá-lo a um hospital. Quero acreditar que meu irmão vai acordar. Milagres assim sempre acontecem nas histórias do Ebo.

Então, Fiifi acorda. Mas quando isso acontece, não acho que seja um milagre, acho que estou alucinando. Seus olhos estão abertos, mas ele olha para o nada. Olhos como um vidro. Meu irmão parece extremamente frágil.

– Por favor, não me deixe nunca. Não estou pronto para ser filho único de novo.

Memenda

 Hoje é sábado. Os sábados são para o vento.

As redes de todos os pescadores da minha cidade voltam vazias desde terça-feira. Eles culpam meu pai e abriram buracos na sua canoa. Meu tio não tem mais permissão para vir a nossa casa.

Em Fida, os bebês de tartaruga começaram sua jornada em direção ao mar. Na sexta-feira, Fiifi jogou fora a coleção de conchas.

Os sábados são para o desconhecido. Se quiser falar com deus, fale com o vento e eles responderão. Os sábados são para lidar com o sobrenatural.

Estou na praia, meu queixo apoiado nos joelhos. Sempre gostei do oceano, mas agora tem algo que constantemente me guia em direção ao mar. Às vezes, escuto Mãe oceano quando estou tomando banho. Fico parado com os olhos fechados e deixo a água correr pelo meu corpo até que alguém – geralmente minha mãe – bate na porta do banheiro e me manda parar de gastar água. Mãe Oceano continua me importunando para que a visite. Outras vezes, escuto um urro e um rosnado grave. Sei que eles vêm da ilha de Afia.

As tartaruguinhas ainda estão fazendo a jornada. Quero me juntar a elas e nunca mais deixar o oceano. Mas, por agora, é o bastante ter a água do mar lavando meus pés.

Ebo é o único que não me questiona quando venho aqui. Ele costuma vir junto comigo. Penso em falar para ele sobre os sons que tenho escutado, mas não tenho certeza se ele é ou não a criatura que vi. Olho para ele. Está deitado usando óculos de sol e com a cabeça encostada na areia. Já tem duas horas que ele não diz nada.

– O que aconteceu quando você quebrou o tabu? – Pergunto.

Ele se senta.

– O que ela te mostrou?

Escutar todas aquelas vozes e aqueles gritos sem corpo é infernal. Mas, estranhamente, é reconfortante saber que essa experiência não é só minha.

– Massas de carne – respondo – Algumas parecem até pessoas mas consigo perceber que tem algo de errado com elas. E agora estou ouvindo o tempo todo vozes pela cidade.

Os lábios de Ebo se contraem.

– Você vai aprender a ignorar as vozes. Eu não cheguei a ver corpos, só sangue. A cidade inundada de sangue.

– Então, aquilo que eu vi é o que realmente existe na Ilha de Afia?

– Sim, só que da próxima vez que você ver a ilha, não vai ser na sua cabeça. Você estará de fato lá.

Seguro minha cabeça com as mãos.

– Por quê?

– Tenho certeza que você nunca escuta o que te digo – diz Ebo – A ilha está sempre flutuando em direção à costa por um motivo. A Mãe Oceano quase não consegue mais segurá-la. Ela está muito mais fraca do que no passado.

Olho para o mar e percebo que a ilha de Afia está mais perto agora do que já estivera a minha vida toda. Em breve não será mais necessária uma canoa para chegar lá.

– Você não respondeu minha pergunta.

– Você já vai entender. – Ebo responde – Às vezes,  quando alguém quebra o tabu, a Mãe Oceano cria laços com essa pessoa iguais aos que ela tem com a cidade. Aqueles que então pertencem a ela devem ajudar a manter a ilha de Afia longe.

– É uma ilha – deixo escapar a frustração na minha voz – Como ela vai ser afetada por qualquer coisa que a gente faz?

– Bom, isso requer um pouco de magia lunar e uma viagem para a ilha para destroçar alguns monstros.

– Para de contar outra de suas histórias.

– Só porque é uma história, não significa que não seja verdade.

Sinto algo entalado na garganta.

– Eu não pedi para fazer parte disso. Quem se importa com o que essa ilha faz?

Meu tio coloca os óculos de sol na cabeça.

– Essa história de como viemos do interior que o pessoal conta na cidade está incompleta. Não muito tempo depois, houve uma guerra civil, alguns dos mais antigos queriam transformar a Mãe Oceano em uma arma. Eles levariam essa ideia a cabo a qualquer preço.

Meus dedos do pé pressionam a areia entre eles.

– Magia de sangue tem consequências horríveis, você viu no que eles se tornaram. – Ebo disse, sua voz sem hesitação – Foram despejados na ilha, que na época costumava ficar tão longe que mesmo da margem da praia você não conseguia vê-la. Afia não é o nome de verdade da ilha, sabia? A cidade costumava chamá-la de Efiase. Sabe o que isso significa?

Arregalo os olhos. Todos esses avisos de perigo começam a fazer cada vez mais sentido.

– Prisão – digo, sentindo o gosto amargo deixado pela palavra em meus lábios – Então, aquela coisa lá embaixo com tentáculos… é a Mãe Oceano?

Ebo concorda com a cabeça.

– Ela se parece com o monstro que você vive descrevendo.

– O espírito dos mares nem sempre teve aquela aparência. Seja lá qual foi essa magia de sangue que fizeram, acabou afetando ela também.

– E as coisas na ilha são os Desconhecidos?

Ebo ri, levanta-se e mergulha no mar. Pouco depois, sua cabeça desponta em meio às ondas.

— Venha, entre também!

— Não.

— O pior  já aconteceu.

Parte de mim sabe que nada de mal vai acontecer. Ebo não deixaria nada acontecer, mas estou receoso de entrar na água. Parece-me desrespeitoso. Quando mergulho, vejo a criatura da terça-feira nadando por ali. Não foi uma alucinação minha. É verdade, a criatura tem o rosto de Ebo.

— Tio Ebo? — Pergunto e levo a mão à boca. Mas, percebo então que consigo respirar.

Olho para meu corpo. Parece com o de Ebo, mas minhas escamas e nadadeiras são laranja. O que eu sou? Em pânico, nado em direção à superfície e me jogo na areia quente.

— Não, não! — Grito. Mexo as pernas e dobro elas contra meu peito. — O que você fez comigo? Porque tá acontecendo isso comigo?

— Calma, você ia acabar descobrindo mesmo. Seu irmão vai lidar com isso melhor que você, e olha que ele é só uma criança ainda.

Aquelas palavras só serviram para me deixar mais apavorado.

— Fiifi vai ficar assim? E o que é isso?

— Nós somos os Desconhecidos.


Nana Afadua Ofori Atta

Nana Afadua Ofori Atta é uma escritora, poeta e ávida tenista ganense de Takoradi. A escrita dela apareceu na Lolwe, Fantasy Magazine, Crow & Cross Keys, AFREADA,  Lumiere Review e outros lugares. Ela pode ser encontrada no Twitter @afaduawrites.

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