Tradução de “Stolen Memories” (Omenana, Issue 26, July 2023)
Traduzido por:
Lucas Durães Fernandes
Julia Conde Semeler
Ele me colocou nessa prisão empoeirada, escaldante, porque acha que pode me ludibriar. Nem mesmo me concedeu a dignidade de um tapete para me proteger da areia. Os jovens são sempre muito mais confiantes do que suas habilidades permitem. E claro, ser um homem arrogante também não o ajuda em nada. Como é que dizem? A juventude é desperdiçada nos jovens.
Por aqui, nada é mais reverenciado do que a juventude. Muitas velhas acusadas de bruxaria são jogadas na prisão, como eu, ou simplesmente mortas. Ter a audácia de enterrar os seus iguais é considerado um grande pecado, mas esse é apenas um dos meus. Pecado. Uma palavra tão subjetiva. O pecado de um homem é o deleite de outro. Prefiro chamá-los de atributos especiais. Ferramentas para a sobrevivência. Dádivas.
Demorei tanto tempo para aprimorar meus dons e o fiz tão bem que quase não me lembro de uma época em que eu não era assim. As pessoas não me deixam esquecer quem sou. Em vez de aprenderem meu nome, me chamam de A Cega. Aqueles que me deram nome ao nascer o levaram quando me rejeitaram.
Às vezes me pergunto se o sacrifício valeu a pena. Se, no lugar de uma criança que consideravam imperfeita, meus pais tenham ganhado alguém mais aceitável. Tento não persistir nesses pensamentos. Afinal, alguns podem me considerar sortuda. O destino de outras crianças julgadas inadequadas é muito pior. Levadas embora após o nascimento, são cobertas em panos para protegê-las de olhares alheios. Abandonadas no mato, ou para definhar por falta de comida ou para elas mesmas se tornarem alimento, porque o kabumba, o oleiro que nos molda antes do nascimento, negligenciou conceder membros suficientes à criança ou foi zeloso em excesso e deu dentes a ela cedo demais.
Existir apesar da ordem natural das coisas é outro pecado. Mulheres tiveram seus úteros removidos porque o kabumba simplesmente não conseguiu encaixar o bebê no molde.
Suponho que eu era grande demais para que me contrabandeassem. Quando a escuridão chegou, eu era uma garota na puberdade aguardando seu noivado. Idade suficiente para ser útil à minha mãe.
Perdi a visão ao longo de muitas luas. Minha vista foi ficando turva, desaparecendo e, então, tornou-se inexistente. Minha mãe se cansou de me ver tropeçando pela cabana dela. Ela me levou a um curandeiro que aconselhou meus pais a me levarem ao malemde de nosso mzimu – o venerado santuário de nossos ancestrais. O mzimu, ele disse, saberia o que fazer comigo. Bem, descobri que os ancestrais também estavam desorientados. Permaneci no santuário por vários dias, distinguindo a passagem do tempo pelo calor do sol na minha pele. Relutante e incapaz de explorar meus arredores, entrei em depressão profunda. Oscilando entre o sono e a consciência, fraca pela falta de comida e água, acordei uma noite sentindo o focinho molhado de um duiker curioso. Tremendo de desespero, o alcancei, envolvi minhas mãos em seu pescoço quente e o quebrei. Não sei de onde veio a força. Podem dizer que foi o mzimu querendo que eu vivesse. Se foi, ainda preciso descobrir seu propósito pra mim.
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Minha vontade de sobreviver ao sacrifício dos meus pais foi outro dos meus pecados.
Vivi no mato e aprendi a sentir o silêncio ao meu redor, a coexistir com as árvores, os animais e o clima em constante mudança. Eu rastejava pelo chão apanhando gravetos e pedras, fazendo ferramentas e fogo para cozinhar, me aquecer e me proteger de predadores. Andava com meus braços estendidos, tateando por cavernas para me abrigar quando chovia. Usando o som e os cheiros, comecei caçando pequenos roedores; a pouca carne não saciava minha fome, levando-me a ter como alvo animais maiores. Quanto maior o animal, mais couro para vestir. Então, fiquei hábil em separar a carne da pele. Acima de tudo, permaneci escondida, ciente de que minha sobrevivência dependia da invisibilidade. Três ciclos de chuva passaram antes que eu começasse a fazer mais do que sentir. Comecei a ver.
– Ver? – você pergunta. – Se você começou a enxergar, por que não voltou para o seu povo?
Você é jovem. Tem muito o que aprender. Há mais de uma maneira de enxergar. A escuridão me permitiu ver muito mais do que você jamais verá.
Matei aquele primeiro duiker rápido demais para perceber a mudança em mim. Na verdade, mesmo se eu tivesse notado, não seria capaz de descrever o que eu estava vivenciando.
Conforme as estações passavam e eu me tornava uma caçadora mais experiente, comecei a ver centelhas. Eu perfurava um javali com a vara afiada que usava como lança e, ao colocar minha mão nele, pontos de luz apareciam atrás das minhas pálpebras. Então, um calor começava na palma da minha mão e subia pelas veias do meu braço até consumir o corpo inteiro. Era como as faíscas que você vê quando fecha os olhos depois de olhar para o sol, mas eram quentes. Eu via folhas de grama e raízes turvas arrancadas de seu lugar na terra. Às vezes, eu via os membros de outros animais zunindo ao passar. Um javali não tem uma vida muito emocionante, então resolvi procurar memórias mais interessantes para assistir.
A essa altura, eu conseguia distinguir a forma e o tamanho de um animal pelo espaço que ocupava na atmosfera. Eu ouvia não apenas seus gritos como também seus cascos roçando no chão. Eu era capaz de rastreá-los em silêncio e também sabia quais folhas esfregar sobre minha pele para me tornar indetectável. Aprendi a evitar matar rápido demais os animais para que pudesse saborear suas memórias. Após inúmeras expedições de caça ao longo de muitas luas, as visões tornaram-se mais consistentes. Onde antes eu via lampejos, agora visualizava momentos inteiros.
Eu tinha minhas preferências, é claro. Os gnus demonstraram-se bem gratificantes. Eles viajavam por toda parte, me mostrando muito mais do que um pequeno javali aos trotes jamais poderia. Os macacos sempre estavam envolvidos em algum tipo de drama familiar. Mas o mais satisfatório foi o elefante, com visões tão vívidas e profundas. A morte de um elefante me deixava vazia. Uma experiência espiritual que me levou a procurar mais deles para matar.
Era inevitável. Eu precisava saber como seria a sensação. Você não faria o mesmo? Quero dizer, você pode falar que fui vencida pela curiosidade, mas foi mais do que apenas isso. Foi o intrínseco desejo humano de ver o que eu estava perdendo.
Comecei com presas fáceis. Garotinhas cantarolando enquanto apanhavam lenha um pouquinho longe demais da aldeia. Caçadores inexperientes demorando tanto para perseguir seus alvos que eles mesmos entravam na mira. Caçar pessoas é tão mais fácil do que caçar animais selvagens. As pessoas acreditam que têm o direito de existir. Geralmente, elas não gastam muito do seu tempo se preocupando com possíveis perigos.
Você agarra o peito horrorizado, mas eu sei que está mais do que só um pouquinho intrigado. Em minha defesa, eu ainda estava aprendendo. Como disse, eu estava aperfeiçoando meus dons. Naquela época, acreditava que as lembranças só apareceriam no instante da morte, então não tinha outra escolha. Eu precisava matá-los. Vou poupá-lo dos detalhes sangrentos, mas vou sim dizer que não havia nada mais excitante do que tocar a pulsação forte e frenética na base do pescoço, senti-la desacelerar e parar enquanto testemunhava o clímax de suas memórias. Descobri que se eu posicionasse meus dedos no lugar certo, meu pulso refletiria o outro, intensificando o prazer.
Chorei com as visões de como minha vida seria se não tivessem tomado ela de mim. Vez ou outra pensei ter captado um vislumbre da minha mãe. A ferocidade da minha raiva ao vê-la me assustava. Queria evocar as lembranças novamente, mas ao mesmo tempo não queria vê-la nunca mais, então decidi fugir para o mais longe possível da malende, distante daqueles que decidiram que eu não era digna de sua família.
No começo, roubar de uma pessoa me saciava. Eu não precisava caçar memórias mais do que uma vez a cada ciclo lunar. As lembranças também me esgotavam de energia, então caçava cada vez menos por comida. Já não precisava das visões dos animais e especializei a matança. Comida versus memórias. Como eu disse: pecado não, sobrevivência. Enxergar me fez sentir completa de novo. Eu precisava disso para continuar.
Sei que fico repetindo. Não quero que pense que sou etarista, mas as memórias dos jovens são insatisfatórias por algum motivo. Particularmente aqueles ingênuos, fáceis de capturar. Sempre tem alguma coisa faltando nelas, um certo nível de profundidade que só o tempo pode proporcionar – como a crescente potência de uma bebida maturada lentamente. Aquela carência por profundidade me venceu. Ela me tornou imprudente. Eu precisava de mais e mais memórias ou memórias com mais substância. Para conseguir isso, tive que continuar me movendo. Muitas vidas perdidas em uma única comunidade significava o risco de deixar de ser caçadora e me tornar a caça. Passei muitas noites me escondendo de multidões furiosas. Elas não compreendiam o que estavam caçando, e isso, afinal, era o que me salvava.
Meu estilo de vida se tornou insustentável. O terreno de caça estava escasso e minha vitalidade não era a mesma de antes. Decidi me ater a uma única aldeia e focar naqueles que já estavam próximos da morte. A vantagem óbvia é que eles seriam tanto velhos quanto fracos. Então, pela primeira vez em muito tempo, removi o véu da invisibilidade e me revelei aos outros.
No final, foi fácil. Pessoas são falíveis. Muitas sequer imaginariam que alguém como eu seria capaz de ferir, quem dirá representar alguma ameaça. Espreitei um grupo de mulheres que sempre apanhava lenha nas proximidades. Esperei até que se sentassem em uma área e tropecei em direção a elas, me certificando de parecer perdida e confusa. Depois de muita discussão, elas se ofereceram para me levar ao mung’anga local.
Alguém como você poderia se ofender de ser levado direto a um xamã. Você provavelmente esperaria uma recepção calorosa em uma casa de família. Mas a sua vida é diferente da minha. Não presumo ter direito à mínima bondade humana. De qualquer forma, fazia sentido. Se estivesse perdida, a melhor pessoa a me indicar como voltar para onde eu pertencia seria certamente um mung’anga. Eu ainda não sabia, mas aquele único ato foi a minha salvação. Ele me trouxe a esse exato momento.
Fui honesta com o mung’anga. Bom, tão honesta quanto era seguro ser. Contei como meus pais me expulsaram de casa, me abandonando para vagar pela selva até que as aldeãs me encontraram. Era uma história plausível. Crível. Mas havia alguma coisa implícita no seu convite para que eu permanecesse lá, como sua aprendiz. Ele podia sentir minhas habilidades. No fim das contas, ele as subestimou, mas estou me adiantando muito.
Voltar à sociedade foi uma grande mudança. Eu havia passado muitas colheitas sozinha. Naturalmente, queria me distanciar e me esconder dos olhares e dos murmúrios.
Meu trabalho me manteve ocupada. Na moita, entre erros e acertos, misturei poções de saúde e para vitalidade na caça. Isso porque eu já conhecia muitas plantas medicinais, árvores e ossos, mas o mung’anga me ensinou como combiná-las para alcançar seu potencial máximo. Aprendi outra coisa também. Aprendi que eu não precisava matar para enxergar as memórias.
Quando cheguei na vila e passei a viver entre tantas pessoas, meus sentidos se aguçaram. Todas as memórias ao meu redor faziam com que, mesmo sem tocar em ninguém, minha mente fervilhasse de visões. Talvez eu tivesse a capacidade de roubar memórias sem matar desde sempre, mas nunca saberia porque meu principal objetivo na mata era capturar minhas presas antes que pudessem escapar. Agora eu via memórias tal qual eu ouvia vozes e não conseguia filtrá-las. Era exaustivo demais para ser prazeroso. Comecei a perder a esperança de algum dia alcançar novamente a clareza daquela primeira memória roubada.
Abandonei a necessidade de focar nos idosos, em vez disso, optei por fisgar memórias enquanto assistia as consultas do mung’anga. Eu me agachava no canto de sua cabana e escutava enquanto o paciente contava sua história. Descobri que, se mantivesse minha respiração estável e concentrada, eu poderia alcançar visões intensas.
Com o passar das estações, construí uma biblioteca de memórias considerável, com a qual podia cruzar informações a fim de sanar as doenças de nossos pacientes. Eu podia, por exemplo, usar as memórias de uma mulher para deduzir que seu desconforto não era causado por algum feitiço misterioso, mas pelo fato de que seu marido rebelde, que também veio para uma consulta, estava plantando suas sementes em muitos campos diferentes. É claro, mantive muitas dessas coisas pra mim mesma porque não serviam ao meu mestre. No fim das contas, ele era um adivinho, não um curandeiro. Se ele solucionasse todos os problemas que entravam por sua porta, logo acabaria desempregado. E de qualquer forma, o povo gostava do mistério dos feitiços e encantos. Não estou dizendo que essas coisas não existem. O que estou dizendo é que adivinhação e cura são coisas diferentes e, na minha época, a regulamentação era clara. Mas estou divagando.
Agora, onde eu estava?
O mung’anga sabia que eu tinha habilidades, mas nem mesmo ele podia imaginar o tamanho da minha força porque, convenhamos, eu não enxergo. Pelo menos não de maneira natural. Ele acreditava, com razão, que a sensibilidade aguçada dos meus outros sentidos melhorava minha intuição. Ele pensava que, como todo bom mung’anga, eu estava montando um quebra-cabeças, atenta à voz do paciente e usando dúvidas ou preocupações para compreender seus pensamentos. Ele começou a pedir minha opinião em casos particularmente difíceis. No início, ele me perguntava para poder me ensinar, e depois, para considerar meu ponto de vista.
Ouso dizer que a clínica era muito melhor com a nossa parceria. Ele, sendo homem, não via como uma parceria. Ele me escondia atrás de uma cortina em sua cabana e me fazia diagnosticar seus pacientes enquanto roubava todo o crédito.
Ele sabia muito bem que se as pessoas descobrissem o quão útil eu era pra ele, viriam me procurar. Sendo honesta, eu era muito mais intrigante do que ele. Eu não precisava usar bugigangas especiais ou proferir encantamentos indecifráveis para que eles acreditassem no meu poder.
Duas coisas combinadas aumentaram o nível da minha ambição. A primeira foi egoísta. Bem, pra ser sincera, ambas foram, mas a primeira foi um pouco mais mesquinha. Estava farta do mung’anga me mantendo afastada dos pacientes. Sua necessidade de reconhecimento me atrapalhava. Eu ansiava por tocar os pacientes. Sentir a respiração contra meus dedos enquanto eu traçava o contorno de suas faces. Sentir o pulso de uma pessoa ainda era o melhor método para ver memórias, mas o mung’anga estava no meu caminho. Ele se tornou um estorvo. Usei todas as minhas forças para não gritar para que ele saísse. A segunda é a razão pela qual estou na prisão.
O mung’anga era um homem reverenciado. Pessoas vinham de todos os lugares para buscar seus serviços. Mas, de longe, era gente comum que não tinha muito a oferecer em troca de seu trabalho. Sua verdadeira renda provinha dos pacientes abastados – caçadores e pescadores bem sucedidos, viúvas ricas e chefes de tribos.
Esse último grupo, os líderes dos homens, eram os mais vulneráveis e buscavam os tratamentos mais raros. Também exigiam sigilo máximo e pagavam o que fosse necessário para obtê-lo. Não podiam ser vistos visitando um mung’anga, então o mung’anga ia até eles. Ele partia sob o anonimato da escuridão e voltava na alvorada, sem mencionar nada sobre os acontecimentos da noite. Eu era paciente, aguardava meu momento. Ele logo perceberia que precisava de mim para ser mais eficaz.
Veja só, ser um mung’anga é uma prática competitiva. Quanto mais você ascende, mais vulnerável se torna. A qualquer momento, algum jovem pode aparecer e te desbancar. Isso se você tiver sorte. Se não, pode acabar morto.
Quando você se torna o adivinho escolhido de um chefe, os riscos aumentam consideravelmente. Não há outra alternativa além de ser bem sucedido. Por exemplo, se você der a um chefe um amuleto para derrotar um inimigo e ele falhar, então ou você ou ele morrem. Só existem dois motivos para um encanto não funcionar: uma falha sua ou a incapacidade do paciente de seguir instruções – e você não quer falar para um chefe que ele está errado. Bem, poderia, mas somente se tivesse construído certo nível de confiança. Mas meu mestre não conseguia identificar as verdadeiras necessidades de um paciente. Verdade seja dita, ele era completamente inadequado para servir um líder poderoso.
Quando finalmente me pediu para acompanhá-lo na visita ao seu paciente mais importante, foi porque estava com a faca no pescoço.
Você deve estar exausto das minhas digressões, mas são essenciais para contar toda a história. Por favor, permita-me mais uma enquanto eu explico o complicado cenário político no qual vivemos.
O homem que contratou meu mestre não é o Chefe, mas aspira a ser. Esse foi o primeiro erro do meu mentor. Você não pode se alinhar a um alpinista social imprevisível, sedento por poder. Não há propósito em comum. Um homem que deseja tomar o poder a qualquer custo sempre precisará de muito mais do que você pode oferecer. Esse homem, o mesmo que decidiu me jogar na prisão, é um grande caçador. Seu nome é Kayambila, e ele se tornou tão habilidoso na caça que já não segura uma lança em suas próprias mãos. Ao invés disso, ele é um comandante de caçadores que construiu alianças com muitas nações e acumulou uma grande fortuna. Ele não apenas conquistou o respeito de seus iguais como também de pessoas em posições muito mais elevadas que a dele. Apesar disso tudo, continua sendo um mero soldado de infantaria no exército da Mwene. Bem, ele é muito mais do que um soldado raso. Como general, conduziu o exército a famosas vitórias, permitindo que ela conquistasse muitas das aldeias ao nosso redor. Mas, é claro, enquanto ele não for o Chefe, se considera apenas um mero soldado. O fato de a verdadeira chefe, a Mwene, também ser sua irmã, apenas coloca mais sal na ferida.
A frustração de Kayambila cresceu junto com o reino da Mwene. Ele não consegue entender por que uma mulher, que não empunha uma lança, deveria ou mesmo poderia liderar uma nação.
Meu mestre estava em uma encruzilhada. Fornecer a Kayambila amuletos e remédios para vencer batalhas já não era suficiente. Agora, ele precisava convencê-lo de que era o mung’anga certo para capacitá-lo a destronar sua irmã. Esse foi o motivo para finalmente decidir que era hora de me levar junto com ele.
Um dos benefícios de estar submersa na escuridão é que eu não me sinto intimidada por aqueles à minha volta. Não perdi de vista meu objetivo quando fui levada para dentro da cabana de Kayambila. Tinha feito minha lição de casa. Eu conhecia a política.Seus soldados e conselheiros nos visitaram e eu aprendi muito observando suas memórias. Não preciso mencionar mas, a essa altura, eu também conseguia acessar a mente do meu mestre. A demora do mung’anga em me trazer não foi um empecilho.
Enquanto ele ouvia meu mestre entoar seus encantos incessantemente, invadi as memórias de Kayambila.
Normalmente, quando roubava memórias, eu era apenas uma mera espectadora, mas, com Kayambila, era como se ele estivesse me contando a história. Ele era a pessoa mais poderosa cujas memórias eu já havia roubado, precisei controlar minhas mãos trêmulas. Do meu canto na cabana, eu o via derrotando exércitos em combate, via debates com figurões importantes da nossa região, via discussões com sua irmã. Quando finalmente vi o que eu precisava, aguardei.
Por fim, meu mestre terminou suas poções, pós, encantos e amuletos. Durante o silêncio de reverência que costuma suceder tais procedimentos, falei
– Vai precisar de armas para derrotar sua irmã – eu disse – Você só vai consegui-las dos Zelo – os fantasmas do Norte – e eles só vão entregá-las se você oferecer prisioneiros de guerra. Precisa dar escravos a eles.
Tenho que admitir. Não foi algo particularmente perspicaz de se dizer. Todos conheciam a insaciável necessidade dos Zelo por escravizados, mas eu estava apostando no elemento surpresa. Me tornei invisível e todos esqueceram que eu estava lá, o que potencializou a gravidade das minhas palavras quando finalmente abri a boca, além do fato de que a maioria das pessoas, incluindo meu mestre, não ousariam dizer a Kayambila o que pensavam.
Quando tive certeza de que todos me ouviam, continuei – Você não vai vencer essa guerra no campo de batalha – disse – Será necessário tempo e estratégia.
– Continue – ele disse depois de um tempo, mas permaneci em silêncio. Hesitei por tempo suficiente antes de continuar. — Com todo o respeito – eu disse – estratégia demanda discrição.
Não precisei falar mais nada. Kayambila compreendeu a necessidade de haver um único homem no comando. Não sei o que aconteceu com meu mestre.
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Ao longo das muitas estações que passaram, Kayambila e eu enfrentamos muitos desafios juntos, dentro e fora do campo de batalha. Ele sabia que a proximidade melhorava minhas habilidades de vidente, então me levava consigo para todos os lugares. Logo, se tornou dependente de mim e não se importava mais em prestar atenção especial a amigos ou inimigos. Ele sabia que eu traduziria suas palavras. Era quase como se preferisse nossos momentos silenciosos, meus dedos em seus pulsos ou cingindo sua testa.
Com o tempo, me tornei tão infame quanto ele. Embora não entendessem exatamente o que eu fazia, esperavam me ver onde quer que ele estivesse. O único ponto negativo foi que, por causa do tempo que passávamos juntos, comecei a me enxergar em suas memórias. Ver como fui de pele macia para um rosto enrugado, de uma cabeça cheia de cabelos grossos cacheados para fios grisalhos e ralos. Tinha vislumbres dele através das memórias de outros e, apesar de envelhecer com o tempo, ele não definhou como eu, ao invés disso, ganhou uma postura mais imponente.
Mas, como eu disse, não dá para formar uma aliança com um homem como Kayambila. A tomada do poder se tornou um processo lento demais para ele. Eu não podia dar mais desculpas. Ele queria saber porque sua irmã ainda era a Mwene.
Me cansei de suas reclamações constantes. Assistir suas memórias se tornou entediante. Comecei a acreditar que sua irmã talvez fosse melhor. Ela se cercava de conselheiros poderosos e, melhor do que isso, tinha o povo ao seu lado. Eles sabiam que não seriam vendidos aos Zelo, com quem ela se recusava a fazer negócios. Dada a chance, Kayambila ficaria feliz em trabalhar com os Zelo e todos sabiam disso.
Eu estava ganhando tempo, eu disse, para o seu próprio bem. Se tentasse tomar o poder agora, o povo se levantaria contra ele. Disse que a confiança tranquila dela falava mais alto que sua angústia desesperada; antes que ele sequer fosse considerado, era mais provável que seu filho se tornasse chefe. E, só para reforçar meu argumento, disse que as memórias da Mwene tinham muito mais profundidade do que as dele jamais teriam. Isso bastou. Ele me jogou nessa prisão e me largou aqui como uma criminosa comum. Poderia ter me matado, mas sou valiosa demais.
Seguindo o conselho de um mung’anga, ele decidiu sacrificar seu filho, Sitondo, ao mzimu para evitar uma reivindicação ao trono. Ele acha que isso o tornará mais poderoso, mas não vai.
Escute só, eles correndo por aí em busca dele.
Kayambila esqueceu que estratégia demanda discrição. Minha percepção é muito mais sofisticada do que a dele. Na verdade, meus dons superaram até mesmo minhas próprias expectativas. Eu sabia que ele me trancaria aqui bem antes que esse pensamento sequer fosse um lampejo em sua mente.
Já havia sussurrado a Sitondo. Ele está a caminho da corte real em busca de refúgio. Dei-lhe instruções rigorosas sobre o que deve dizer e, quando ele falar, a Mwene não terá outra opção a não ser me mandar socorro. Então me livrarei dessa irritação e tomarei meu lugar de direito ao lado da Mwene. Mal posso esperar para finalmente poder trabalhar com outra mulher que compreende o que é necessário para permanecer no topo. Alguém com visão de verdade.
FIM
Mwanabibi Sikamo é uma contadora de histórias e produtora audiovisual que explora vidas africanas reais e imaginárias tanto do passado quanto do presente. A ficção dela é repleta de tradição mágica da sabedoria de povos indígenas. Ela foi publicada pela Olongo Africa, AFREADA e Iskanchi Magazine. Ela atualmente escreve seu primeiro romance.