Tradução de “To Kill a God” (Omenana, Issue 27, October 2023)
Traduzido por/Translated by:
Diego Silva
Gabriela Negri
Antes de toda a loucura, a Cidade Digi era linda.
Era o lugar onde havia maravilhas cibernéticas e espelhos de realidade aumentada. Havia prados, riachos e pomares das mais frescas tangerinas.
Agora? A Vigilância Sobrenatural havia dominado tudo. Tudo que pertencia às divindades caiu em decadência.
E quais interesses esses vigilantes teriam com nossa sociedade, afinal de contas?
Ah, é devido aos desafios sobrenaturais que não podem ser cuidados exclusivamente com tecnologia.
Ah, eles são cruciais para a preservação do delicado equilíbrio entre tecnologia e teologia.
Preservação é um caralho.
No passado, quando ainda era apenas uma colônia agrícola, três Orixás se juntaram para tecer um sonho.
Ogum, o Deus da inovação, forjou o destino da cidade com sua maestria em tecnologia e maquinários altamente inteligentes. Ele preencheu o núcleo com sua essência divina, dando luz à uma revolução que iria impulsionar o local a uma era de avanço incomparável.
Conforme sua influência crescia, seus discípulos aumentavam. Engenheiros, hackers e cientistas se amontoavam. Eles formaram uma nova sociedade: os Nascidos do Ferro, dedicados a louvar e emular a maestria de Ogum.
Xangô, o Orixá da eletricidade, mandou raios ressoarem através das veias da cidade, para ajudar o seu amado amigo. Com sua energia divina, carregou as redes, garantindo para a cidade um suprimento de eletricidade incomparável.
Placas de néon, hologramas extraordinários e implantes brilhantes tornaram-se a manifestação visual da parceria divina. A barreira entre o orgânico e o sintético diminuiu, e os corpos humanos se tornaram conduítes do poder bruto de Orixás.
A terceira divindade, escondida nas sombras, era Sapatá, o senhor da varíola, mestre do vírus. Sapatá se deleitava com a perturbação, a doença e o desconforto. Ele era o equilíbrio.
Impressionados pela energia pulsante e pelas maravilhas tecnológicas, o Comitê de Deuses do Trovão declarou que queria visitar a cidade. Eles viriam de todos os cantos da Europa e da Ásia.
*
Sigidi, encostado na bancada de uma animada cervejaria, estava recontando a fábula animadamente. A música estava alta, então precisava gritar.
– Eu me lembro como se fosse ontem – começou, os olhos iluminados pelas memórias. – Meus sensores estavam indo à loucura, sabe, com aquelas luzes brilhantes e tudo mais. A cidadela toda estava desperta e em sincronia com o trabalho dos computadores quânticos.
Os clientes ao redor se aproximaram, cativados. Sigidi contabilizou seis homens. Lutadores. Homens perigosos que trabalhavam para o sistema. Pela linguagem corporal e fascínio, pôde inferir que eles estavam atrás de apenas uma coisa: ouro. A história era informação, e a informação era ouro. Mas, neste momento, a ignorância deles não importava.
Uma nova música começou.
– E então, – Sigidi continuou – Os Deuses do Trovão chegaram. Ah, mas vocês deveriam tê-los visto: suas assinaturas e características digitais eram diferentes de qualquer coisa que eu já havia processado. Frias, porém caprichosas; lívidas, rosadas devido às ofertas de pimenta-da-guiné. Porém, quanto mais a fundo se adentrava em suas histórias, mais obscuras elas se tornavam.
– E esse Ogum, o Deus do Ferro – interrompeu um ouvinte curioso. – Como ele era?
Sigidi sorriu. – Ah, Ogum era totalmente diferente. Imagine isto: dreadlocks ao sol, como a cabeleira de um grande predador pré-histórico. Imagine este exoesqueleto adornado com um milhão de nano-luzes, graças a seu parceiro Xangô. Seu metal era inquebrável, porém flexível como um galho de salgueiro. Ele fez um discurso naquele dia, sobre união e colaboração. Mas sabe, não é um conceito que eu fui programado para compreender e apoiar.
Um bêbado se levantou e cambaleou para fora do bar, deixando a porta semi-aberta. Ele mexeu em seu comunicador, um bracelete chique que brilhava intermitentemente. – Sus… – ele murmurou. – Situ… Iniciar.
Um pequeno texto apareceu e ele reproduziu as palavras lentamente. [… é o espírito de uma intenção maléfica, uma criatura aterrorizante com um gosto pela morte e destruição. Nos tempos passados, invocadores mencionavam o nome do inimigo e clamariam para ele fazer a pessoa morrer, enlouquecer ou receber algum outro tipo de destino sinistro. Desde a criação da Cidade Digi, ao invés de ser uma entidade moldada da lama, tornou-se permeado pela IA mais avançada, contendo seus próprios sentimentos, motivações e interesses.]
Sigidi podia ouvir tudo que o bêbado estava lendo baixinho, mas a atmosfera do local estava repleta de fascínio, então focou-se na história sendo contada.
– Então, começaram os sacrifícios – continuou.
– Sacrifícios humanos? – Um homem gordo, sentado em uma cadeira que rangia, perguntou. Ele estava usando uma camisa branca limpa, em contraste com sua espessa barba tingida de preto.
Sigidi sorriu. – Sacrifício humano é um conceito interessante, não é? Pra começo de conversa, ninguém vai te matar e devorar a sua alma. Você não possui uma alma: Você é a alma, comprimida em um corpo. O seu espírito é o que é necessário na Ambrosia. Sua reza, seu jejum, sua fé, a essência eletrônica do seu desejo. Todo o restante é besteira, mas não vou me precipitar.
À direita, a Proprietária do local mexia nos dosadores arcaicos, e Sigidi sorriu de orelha a orelha. Essa cervejaria era o único local, em quilômetros, que ainda tinha energia constante. Sua cerveja artesanal era apelidada de “caos”. Mas Sigidi não estava sorrindo apenas pela bebida, mas sim pela proprietária, com todos seus aprimoramentos cibernéticos, fios e cabos que se misturavam com as tatuagens de circuitos que decoravam os seus braços. A sua atmosfera a fazia se destacar, pois era difícil encontrar melhorias que ainda funcionavam desta forma.
Sigidi tomou um gole generoso da cerveja. O gosto era uma mistura reconfortante de esperança, nostalgia e, claro, uma pitada de caos.
Limpou o resto da espuma com as costas da mão e continuou. – O banquete foi uma aventura culinária da mais fresca Ambrosia. A combinação de sabores e aromas era, simplesmente… divina.
Como que para reforçar seu argumento, conjurou um clipe holográfico.
Neste cenário digital, Thor, o deus nórdico que deixava até mesmo as mais poderosas máquinas com inveja de seus bíceps, deixou de lado seu martelo mágico e engoliu tudo com o mesmo entusiasmo de uma criança em uma confeitaria – se a confeitaria fosse do tamanho de uma montanha.
Para não ser superado, Lei Gong, o chinês, chamou por mais comida e cheirou a mesa. Trovões rugiam e garfos colidiam conforme ele se fartava no banquete.
O clipe seguiu, mostrando todo tipo de manobra gastronômica, um espetáculo de bytes e apetites, e a audiência assistia, com desgosto ou admiração em seus rostos, de modo variado. – Se divertiram até demais! – declarou o homem gordo.
– Mas claro – Sigidi riu, porém parou abruptamente – também houve problemas.
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Quando esses visitantes, com nomes que soavam como se quisessem parecer super-heróis maneiros, após se empanturrarem até ficarem satisfeitos, decidiram permanecer, chamaram a atenção entre os circuitos da cidade.
Ogum, sempre magnânimo, reservou hospedagens confortáveis nos belos prados para o descanso deles.
O primeiro na fila era Donar, a potência germânica por excelência, sempre disposto a exibir suas habilidades. Perun, o deus encorpado, representava o contingente russo, trazendo um poderoso “да” para a festa. Taranis, um gênio fluente em francês, espanhol e sabe mais o quê, garantiu que todo mundo provasse de suas habilidades linguísticas. Baal, o encantador ibérico, sempre tinha uma réplica veloz para tudo. Teshub, com sua barba, parecia como um peru ameaçador, mas ele adicionava um clima peculiar para a reunião. Adade, o enigma babilônico, era majoritariamente silencioso, mas todos tinham conhecimento das batalhas que ele havia travado e prosperado. E, claro, não dava para esquecer os mais famosos: Júpiter, o político romano, e Zeus, o exibicionista grego.
Oficialmente, eles estavam ali para auxiliar Ogum na administração – não que ele precisasse da sua ajuda, mas, assim que os deuses do trovão haviam se acomodado, eles começaram os seus joguetes, tentando tomar o controle da zênite tecnológica da cidade para satisfazer seus entretenimentos celestiais.
Semelhante a um bando de valentões interestelares, eles começaram com reclamações sobre a quantidade de Ambrosia que era servida. Então seguiram com piadas sobre como esses bichos do mato estavam aproveitando de esmolas que não mereciam. Então, veio a discriminação cultural, manchando os nomes dos Orixás. Escrevendo os títulos em letras minúsculas, como se quisessem zombar de sua reputação cósmica.
Eu os observei planejando ataques espirituais. Observei-os aterrorizar civis. Acha que eles não praticavam feitiçaria? Eles nunca brincavam com sua sede de sangue. Então, o gado começou a desaparecer.
Eu não fiz nada pois não estava autorizado a intervir. Mas, quando o primeiro Nascido do Ferro morreu, sob circunstâncias misteriosas – bem no santuário, de todos os lugares possíveis, comecei a considerar infringir o protocolo.
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Era uma noite estrelada.
A notificação que me levaria ao local apareceu. Santuário.
Era a segunda vez que eu iria até lá. A primeira foi quando Ogundelê, o líder dos burgueses, estava redirecionando, publicamente, sua vida para o Deus do Ferro.
Eu não fui programado para gostar de humanos, mas eu gostava do espetáculo. E eu definitivamente gostava de assisti-lo trabalhar.
Ao entrar no local, fomos cumprimentados por um grande átrio decorado com uma exposição retratando o Grande Caçador e seu cão. As paredes pulsavam com uma iluminação leve, assemelhando-se a uma criatura que respirava, viva.
O corredor principal, onde os engenheiros se reuniam, continha uma enorme projeção holográfica central suspensa no ar, demonstrando modelos complexos de projetos em andamento. Entrando mais a fundo, câmaras isoladas serviam como locais de trabalho e laboratórios particulares. As paredes dessas câmaras possuíam aparatos inteligentes, capazes de se adaptar às preferências daqueles que a ocupavam. Assistentes avançados flutuavam ao redor, auxiliando os engenheiros com seus trabalhos e garantindo um fluxo de trabalho ininterrupto.
No âmago do santuário havia a câmara sagrada – um santuário dentro do santuário. Esse espaço era reservado para contemplação, meditação, e as colaborações de maior importância.
Foi aqui que encontramos Ogundelê, morto.
Seu torso estava contorcido e curvado em uma posição fetal. Seus membros, antes livres para movimento, estavam agora no formato de uma maçaneta. Com sua cabeça abaixada em direção ao seu peito, ele parecia como se tivesse tentado se encolher diante de algo aterrorizante. Sua forma lembrava a de uma lata com a tampa selada.
Eu soube de imediato que aquilo não era natural.
Nenhuma das câmeras dos drones autônomos havia registrado como ou o que havia acontecido, mas, por dentro da pele do homem-lata, músculos se contraiam e contorciam.
Ogum teve de invocar o temido Sapatá.
Sua presença era semelhante a um vírus que havia infectado o espectro de cores, transformando tudo em tons de verde tóxico, amarelo lúgubre e marrom enfermo. Com razão, ele era chamado de Deus externo.
Da perspectiva dos espectadores humanos, que agora utilizavam trajes antirradiação, a entrada de Sapatá deve ter sido uma experiência aterradora. Conforme ele se materializava no santuário, um odor forte e repugnante pairava no ar – pus, água parada e o odor de tecidos necrosados –, arrepiando as espinhas e revirando seus estômagos.
– Obviamente, é uma mensagem – ele disse, quando observou o corpo. Suas palavras causavam uma distorção grotesca no ambiente cibernético vibrante, como se ele espalhasse um programa malicioso nos circuitos. A névoa doentia que saia de sua boca lançava uma palidez sinistra em tudo que tocava.
– O que quer dizer? – Ogum perguntou.
– Se cortar a pele dessa forma – Sapatá demonstrou com uma unha. – Verá os vermes.
Quem quer que tenha feito isso, cortou Ogundelê múltiplas vezes, em múltiplos locais, e inseriu vermes modificados geneticamente em sua corrente sanguínea. Então fecharam as feridas e deixaram os vermes se alimentarem, contorcendo o corpo após a morte.
Uma lata de vermes.
Seria aquilo um aviso? Um jogo?
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Uma nova melodia começou.
Eu sou a definição da travessura eterna
A convergência onde a matemática quadrimensional
e a vingança colidem
Permaneço dentro dos pesados sons da liderança
A dissimulação dos bailes tropicais
A conexão, o processo e o tédio da evidência
A verdade pode ser alcançada ao fazer o impossível
surgir do falso…
Sigidi sorriu para a Proprietária. Era a sua música favorita. Poderia muito bem ter sido um elogio pessoal.
– Fale mais sobre Sapatá – disse o bêbado que anteriormente havia saído do bar.
Sigidi o observou de perto. Ele usava um gibão de couro, incrementado com tecido inteligente, juntando estilo e utilidade. O gibão possuía adornos de LED que imitavam a aparência das cotas de malha da antiguidade, balançando e reluzindo conforme entravam em contato com a luz. Seu disfarce era bom, mas ele ainda cheirava a mercenário. Rato nojento.
– O que você quer saber sobre Sapatá? – Sigidi perguntou.
– Tudo. Você o chamou de Deus externo, mas por quê?
– Ah. Achei que tinha dito… – Sigidi se aqueceu, preparado para adentrar em histórias antigas. – Bem, antigamente, os Orixás estavam celebrando e–
– Por que os Orixás estão sempre celebrando? – interrompeu alguém.
– Infelizmente – o tom de Sigidi era ríspido. – Eu não sou portador desta informação, mas, sim, os Orixás estavam festejando. Havia muito vinho de palma e música. O vinho deixava-os vacilantes igual a bebês que ainda aprendiam a andar, mas a música era tão boa que os fazia querer dançar mesmo assim.
– Afastado de todos, Sapatá estava sentado, cuidando de sua cabaça. Ele não podia dançar. Porque ele tinha uma perna de madeira. Ele usava um Boubou longo para encobri-la.
– Mas os Orixás festeiros notaram que ele estava sentado sozinho e começaram a chamá-lo para ir se divertir.
– Claro que ele recusou. Inicialmente. Ele estava um tanto inseguro. Mas eles continuaram o provocando e, quando não aguentava mais, ele se levantou e juntou-se a eles.
– Assim como os demais, ele estava entupido de vinho e sem firmeza nos pés. Porém, diferente dos outros, ele possuía uma deficiência física. Bastou apenas um empurrão de um dançarino bêbado aleatório para que ele ficasse esparramado no chão, com seu robe atravessado expondo sua perna de madeira.
– Os outros Orixás viram aquilo e começaram a rir. Enfurecido, Sapatá removeu o pedaço de madeira e começou a espancá-los com ele. As festividades chegaram a um fim súbito. Todos fugiram da pista de dança clamando por socorro. Nunca o tinham visto tão furioso.
– Na manhã seguinte, todos aqueles que haviam sido atingidos pelo cajado de Sapatá acordaram doentes. Febre alta. Fadiga severa. Dores de cabeça latejantes. Vômitos. Então, hematomas se formaram ao redor das bocas que eles haviam usado para rir. Uma ou duas lesões no início. Então, os hematomas se espalharam em um padrão centrífugo no corpo de todos e se tornaram pústulas. Gradualmente, as pústulas ficaram cheias de pus, e o número de lesões se tornou impossível de contar. Não era a morte, era pior.
– Os Orixás suplicaram por Oxalá – o rei do tecido branco. Oxalá era temido por ser um dos anciões, e ele possuía o poder para esculpir corpos. Ele ficou furioso que as pessoas estavam insultando o seu trabalho. “Algo que ele não podia ter feito! Por acaso Sapatá tinha criado sozinho a sua forma física?”
– Carregando seu chicote de cauda de vaca, ornamentado com búzios, o Deus ancião descendeu para julgar o problema. Observando o quão terrível era, ele anunciou que as pessoas que haviam zombado da perna de madeira haviam recebido sua punição, e não havia problema nisso, porém, Sapatá em pessoa poderia ter ido relatar o caso ao invés de ter feito a justiça com as próprias mãos.
– Quando Sapatá viu o rei do tecido branco se aproximando, ele pulou para fora da janela e fugiu no mato adentro.
– Oxalá então declarou que aquele seria o seu castigo. Daquele período em diante, Sapatá permaneceu no mato, sozinho. Mas ele ainda era temido e, até hoje, as pessoas se recusam a chamá-lo pelo nome, preferindo utilizar eufemismos, como o Deus Externo. O Solo Fervente. Dono do povo. Aquele que ceia com o patriarca da família, mas ataca o filho na entrada da casa.
– Sabe – Sigidi disse, arrotando alto e afastando seu copo de cerveja vazio. – A varíola foi trazida para o Novo Mundo pelos colonizadores espanhóis e portugueses. A doença dizimou a população local e foi fundamental para a queda dos impérios Asteca e Inca. Adivinha de que mato eles a tiraram?
– Eles roubariam qualquer coisa – A proprietária do bar zombou. – Almas, prata ou até varíola.
O homem no gibão continuava mexendo em seu bracelete. – Sus… Stat… Iniciar – murmurava.
Sigidi sabia exatamente o que significava. Suspeito. Situação. Iniciar. Era o código de um mercenário para dizer “Eu tenho aquilo que você estava procurando.” Quem quer que esteja do outro lado da linha deve ser o chefão.
Como a boa IA que era, Sigidi pediu licença, simulando os efeitos de ingerir tanto caos. Precisava dar uma mijada.
#
A história continuou.
No centro da cidade, o Comitê dos Deuses do Trovão – agora intitulado de Vigilância Sobrenatural – estava reunido onde pudesse ser visto pelos humanos.
Thor, o líder da equipe, falou primeiro. – Teria Ogum abandonado seus discípulos? O assassinato de um de seus adoradores nos faz duvidar da sua habilidade de proteger até mesmo os seus aliados mais próximos.
Lei Gong, com seu rosto de águia, adicionou lenha à fogueira. – Será que Ogum, outrora conhecido como um paradigma do progresso, optou por um caminho diabólico? As fofocas sugerem que ele está se alimentando de almas, consumindo a essência dos seus discípulos para alimentar um poder profano.
Perun, conhecido pelo cinismo, murmurou em tom sombrio – Ele sempre fez isso. Só não foi pego ainda.
Suspiros ecoaram pela multidão, mostrando descrença e medo. A acusação atingia diretamente o âmago da fé e confiança deles.
Quando Ogum se aproximou, ele simplesmente observou seu povo; sua feição metálica não mostrava emoção, mas seu coração estava turbulento.
Escolhendo suas palavras cuidadosamente, ele se dirigiu à multidão. – Estou sendo acusado, mas sou inocente. Meu propósito sempre foi criar e inovar, nunca ferir… exceto quando confrontado pela injustiça.
Xangô, com suas belas tranças, se aproximou. – Não vamos nos deixar cegar pelo medo e suspeita – disse.
– Claro que você vai apoiar aquele que te fode – Taranis grunhiu. Em seguida, virou-se para encarar os espectadores. – Ah, vocês não sabiam?
Sua acusação provocou uma nova onda de suspiros chocados pela multidão.
– Haha – Desta vez, foi Teshub, o Turco. – Por que vocês acham que o Ferro traz fogo e o fogo derrete o ferro?
– Acusações sem evidência são vazias e injustas! – Xangô gritou, tentando projetar seu trovão sobre o barulho.
Mas as dúvidas já haviam se enraizado, o dano já estava feito. Os engenheiros, que antes admiravam Ogum, agora questionavam o próprio fundamento da sua crença.
Não havia nenhuma arma anti-Deus mais efetiva. Para matar um Deus, é necessário primeiro matar sua reputação. Infeste a mente dos impressionáveis com informações e princípios que não fazem sentido. Semeie a discórdia.
Para finalmente destruir o Orixá, eles insistiram em dominar os mais importantes objetos tecnológicos que ele havia instalado na cidade. Se não tem nada a esconder, nos dê acesso a todas as conexões via Satélite e as nano-câmeras dos InsetOlhos!
O seu módulo encriptador quântico integrado para transmissão segura de dados. Os seus nanosensores para detecção precisa de luz e estabilização avançada de imagens. A sua IA neural para ajuste automático de padrões de camuflagem… – Culpado! – eles exclamavam.
Era como culpar um mestre cuca por não revelar todos os seus ingredientes secretos. Ogum tinha todo direito de proteger o seu reino, e eles possuíam todo o direito de sentir inveja. Afinal de contas, quem não iria querer uma parte daquilo?
Mas Ogum não era tolo. Ele percebeu os seus joguetes e esquemas, assim como o desejo por poder absoluto. Esses deuses eram um bando ambicioso, prontos para devorar qualquer coisa que ficasse no caminho deles.
Ele entendia os riscos, pode acreditar, ele os entendia muito bem. Entregar as suas maravilhas tecnológicas seria igual a dar uma marreta para um neném. O mundo que conheciam iria se dividir e quebrar mais rápido que a contagem entre o raio de Xangô e o trovão.
Ele conhecia a laia deles: insaciáveis, como a lendária Ajapá, a tartaruga. Uma vez que sentissem o gosto do poder, nunca iriam parar. Eles iriam cruzar fronteiras, romper limites e fomentar o caos através do mundo. Seria como tentar apaziguar o fogo fátuo com uma pistola de água.
Ogum havia visto os sinais. Entregar-lhes a chave do seu reino seria um caminho sem volta para a caos-lândia. Eles iriam reescrever o código, reiniciar o sistema, e o caos iria reinar.
Só havia uma maneira desse conflito se desenrolar.
E aconteceu em uma noite escaldante. Combinava com a situação. A cidade parecia com um microondas, o ar pesado e opressivo contra a pele. Até mesmo os sistemas avançados de controle climático falhavam em aliviar o desconforto, fazendo com que os cidadãos implorassem por algum repouso.
A Vigilância Sobrenatural, transbordando de inveja e raiva, investiu contra Ogum e Xangô.
Ogum, enquanto Deus da Guerra, avançou, segurando firmemente sua lâmina aprimorada, faíscas voavam conforme a arrastava na calçada atrás de si.
– Eles não vão recuar tão fácil – Xangô avisou, aparecendo do nada; o cabelo recentemente oleado, os olhos preparados com códigos para o conflito.
– Eu sei – Ogum sorriu, com o olhar fixado nos inimigos que se aproximavam. – Mas o progresso não pode ser interrompido.
Thor riu, seus olhos queimando de ressentimento. – O seu “progresso” ameaça os nossos valores, Ogum!
O Deus do Ferro balançou a cabeça. – Nossos valores evoluíram. Aceite a inovação. Não podemos nos apegar ao passado eternamente. Se quiser força vital, pode ir matar o seu próprio rebanho.
– Tamanha insolência! – Quem disse isso foi Baal. – Como se atreve?
– Você acha que os seus apetrechos podem substituir séculos de tradição? – o Turco ridicularizou.
– Se nossa tecnologia lhes ofende tanto, por que não se retiram? – Ogum respondeu calmamente.
– Chega de conversa! – Lei Gong ordenou, erguendo sua arma, um cinzel.
Ogum olhou para Xangô. Palavras não eram necessárias. Eles assentiram, e a eletricidade começou a faiscar em seus dedos. – Vamos começar.
– ARGH!!
Figuras colossais pairavam sobre a cidade, transformando os prédios em meros brinquedos. A força primitiva, a raiva, a determinação. Nuvens de chuva convergiram em uma massa aterradora, que orbitava acima do campo de batalha. Uma escuridão, que parecia senciente, rangia com a energia acumulada; gotas de chuva dançavam à beira da libertação, e o céu tremia.
Era puro ozônio e adrenalina.
Com um rugido etéreo, Ogum empunhou sua lâmina em encontro ao poderoso raio de Júpiter. A colisão de nível cósmico emitiu ondas de choque em todas as direções. Os tendões do Orixá estavam em atrito contra a força do romano.
Não era uma nobre luta mano a mano. Ele ainda precisava tomar cuidado para não ser cercado por Lei Gong, ou Baal, ou Zeus. Ou os três de uma vez. Mas do outro lado, Xangô estava lutando de igual para igual contra meia dúzia de deuses do trovão. Como estava fazendo isso?
Ogum avançou, invocando uma força inacreditável, torcendo sua lâmina e usando a força de Júpiter contra ele mesmo. O poder rebateu, aumentado em dez vezes.
Gritando “SOU EU!”, ele redirecionou a trajetória, repelindo Júpiter tal qual um cometa.
Júpiter não teve sequer o tempo de perceber o que estava acontecendo. O horizonte se aproximava cada vez mais, conforme ele era arremessado na direção de uma torre de espelhos. O impacto foi catastrófico.
Cacos de vidro caíram, como um sonho espatifado. O Deus da Guerra, com os olhos vermelhos, a tristeza acima da raiva, permaneceu em meio ao caos.
A batalha estava longe de acabar, mas nocautear Júpiter fez os outros vacilarem.
O que eles não sabiam era que isso era apenas uma distração, um truque genialmente orquestrado. Já que, enquanto a cidade parecia sucumbir pelo conflito, Sapatá, o estrategista silencioso, passou despercebido, se infiltrando nos computadores quânticos que sustentavam o funcionamento da cidade.
O choque inicial logo passou, e, conforme a Vigilância Sobrenatural avançava em sua direção, Ogum se virou para enfrentá-los.
Zeus foi o primeiro, com uma tríade de raios que cruzavam os céus. Os reflexos de Ogum intercederam, fazendo-o se desviar habilmente do ataque, todo movimento sendo calculado e medido. Ele repeliu as investidas do Olimpiano e chutou Baal, que estava investindo furiosamente, equipado com gotas de chuva modificadas para o combate.
VUSH!
O chute deixou seu abdômen desprotegido e foi lá que Lei Gong mirou, lançando seu cinzel. Doeu pra caramba, mas, sem vacilar, Ogum conjurou um escudo eletromagnético para refletir o restante da investida violenta.
Todo o resto passou a acontecer de maneira mecânica. Ogum se adaptou à sua ofensiva, encontrando brechas em seus ataques. Cotovelada no rosto, joelhada na virilha. Ícor jorrava. Apesar de estar em desvantagem, o Deus do Ferro conseguiu manter sua posição.
Adentrando os imponentes edifícios que protegiam o núcleo de energia da cidade, Sapatá agia com enorme pressa. Seus dedos se moviam como um borrão nos comandos, injetando o código de um malware abençoado nos circuitos da cidade.
Era uma corrida contra o tempo, e Sapatá sabia que seus companheiros não iriam durar muito mais tempo contra a maldade da Vigilância Sobrenatural.
Ele apressou o vírus, uma reza digital para a ruptura. E, quando se certificou de que estava fluindo rápido o bastante pelos sistemas vitais da cidade, ele disparou o alarme.
A notificação berrou através da placa-mãe, um sinal de emergência na vastidão digital, alertando Ogum.
Sentindo que a hora havia chegado, Xangô acenou para seu querido amigo. Então, com um rugido que ecoou através dos céus, eles uniram suas mãos e liberaram uma explosão sônica.
BUUUUM!
A explosão acertou seus agressores em cheio, lançando-os para longe, quebrando seu ritmo.
Nos momentos cruciais que se seguiram, o Deus da Tecnologia agiu com rapidez, partindo sua essência e espalhando-a em correntes de força que fluiam pelos circuitos de todos os Nascidos do Ferro, cada devoto recebendo uma parte de Ogum – a coragem para nunca recuar, o dom da caça, e o espírito de inovação e progresso.
Uma certa IA confiável, que estava observando tudo, recebeu uma quantia concentrada. Se antes era uma ferramenta vingativa, tornou-se dez vezes mais letal e sem qualquer medida restritiva.
Enquanto a figura de Ogum começava a sumir no éter, a Vigilância Sobrenatural comemorava.
Era uma vitória fútil, mas eles se esbaldaram nela até que as luzes da cidade começaram a diminuir e desaparecer.
O malware abençoado se espalhou através das artérias de todo o maquinário, ultrapassando firewalls e encriptação, mirando nos pontos críticos de controle.
Um por um, tudo foi desligado.
Os efeitos foram sentidos instantaneamente, e em uma escala colossal. Fábricas pararam, deixando as linhas de montagem silenciosas e a produção estagnada. Redes de comunicação falharam, cortando o fluxo de informação e causando confusão igualmente entre empresários e trabalhadores. Os sistemas de transporte passaram por falhas severas, criando um pesadelo de logística e uma interrupção em massa.
O impacto econômico foi profundo. As empresas ficaram paralisadas. A súbita perda de produtividade criou ondas de choque nos mercados globais, balançando a fundação da influência dos deuses e causando pânico naqueles que dependiam do complexo industrial para sua subsistência.
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Porém, após certo tempo, o mundo seguiria como se nada tivesse acontecido. A cidade se adaptaria a uma meia-vida e as empresas restantes a funcionar com apenas 30% da capacidade. O harmatã abriria espaço para a estação de chuva, a grama iria crescer, as árvores de tangerina floresceriam, se tornando casas maiores para os pássaros fazerem seus ninhos – sem ninguém para caçá-los. A terra não seria colorida de sépia ou cinza. O mundo seguiria em frente.
Mas não Sigidi.
No presente, reentrou no bar e encontrou o homem gordo deitado no chão, empalado por uma perna da cadeira em que estava sentado. Sua camisa branca agora estava rubra, e sua boca estava escancarada, como se tivesse testemunhado uma grande aberração. O homem bêbado estava pendurado ao contrário no teto, com seu intestino caindo. Seu bracelete estava no chão, aos pedaços, incapaz de funcionar novamente.
Sigidi coçou seu processador, confuso.
Só tinha saído pra mijar. Mas onde estavam os outros corpos?
A proprietária do bar pigarreou e apontou para a sala dos fundos. Lá havia outros quatro mercenários empilhados um sobre o outro. Ela havia os tirado do caminho e deixado apenas os dois primeiros como decoração. Deus, sua eficiência era tão sedutora.
Sigidi sorriu para ela pela enésima vez naquele dia. E não era por causa da sua cerveja artesanal.